O Modernismo na crítica de Alfredo Bosi
 



O Modernismo na crítica de Alfredo Bosi

por Elenilto Saldanha Damasceno

Há cem anos, entre 13 e 17 de fevereiro de 1922, ocorreu um evento que marcou a cultura nacional e a história da literatura brasileira: a Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal de São Paulo. A mesma elite intelectual e econômica que desencadeou o movimento modernista de 1922, através da organização e do financiamento da Semana de Arte, também projetou a criação da Universidade de São Paulo. Posteriormente, foi essa geração, com formação acadêmica renovada, que revisou e reorganizou a história da literatura brasileira.

A historiografia literária brasileira, através dessa lente de observação, passou a apresentar o Modernismo como principal referência, capaz de agrupar todas as correntes e estilos literários. Seus pressupostos não foram ratificados fundamentalmente por critérios, mas consolidados através de um discurso hegemônico cujo principal argumento baseou-se na associação de significados entre modernidade e pensamento de vanguarda. Antes da Semana de Arte de 22, aplicava-se o termo Modernismo a tendências e ideias novas emergentes. Só por essa época, e apenas no Brasil, o termo Modernismo passou a ser associado ao conceito de pensamento de vanguarda. Assim respaldado, o ponto de vista paulistacêntrico e modernistacêntrico, inicialmente uma inusitada visão de vanguarda, prevaleceu e construiu sua hegemonia na reestruturação da história da literatura brasileira.

Recentemente, no dia 7 de abril de 2021, a crítica literária nacional perdeu um de seus expoentes: Alfredo Bosi morreu em São Paulo, aos 84 anos, vítima da Covid-19. Bosi foi um crítico e historiador literário paulista com formação e carreira acadêmica pela Universidade de São Paulo. Poder-se-ia inferir, portanto, que seguiu a mesma linha de pensamento hegemônico do atual modelo de historiografia literária brasileira.

De fato, Bosi sofreu tal influência; porém, não se deixou guiar unicamente pela mesma corrente de pensamento. Em sua obra História concisa da literatura brasileira, um dos mais completos e consistentes estudos sobre historiografia crítica literária já produzidos no Brasil, exaltou o papel do Modernismo ao reconhecer que “a seu tempo se verá o quanto ainda lhe devemos” (p.208). Contudo, não persistiu no equívoco de eternizar o Modernismo como influência onipresente na literatura brasileira a partir de 1922, mas o situou como um momento importante que ainda produz reflexos na literatura contemporânea. Bosi percebeu distinções entre os significados dos qualificativos “modernista” e “moderno”, esclareceu que “O que a crítica nacional chama de Modernismo está condicionado por um acontecimento, isto é, por algo datado, público e clamoroso, que se impôs à atenção da nossa inteligência como um divisor de águas” (p.303) e que “pareceu aos historiadores da cultura brasileira que modernista fosse adjetivo bastante para definir o estilo dos novos, e Modernismo tudo o que se viesse a escrever sob o signo de 22” (p.303).

Essa historiografia acadêmica tradicional, por exemplo, definiu como pré-modernista a literatura produzida no período de transição entre as escolas literárias do final do século XIX e o Modernismo. A prosa realista regionalista de João Simões Lopes Neto, a poesia simbolista decadentista de Augusto dos Anjos, o ensaísmo antropológico erudito de Euclides da Cunha, a prosa realista urbana de Lima Barreto e a retórica quase naturalista de Monteiro Lobato foram agrupados numa única “salada”, classificada como Pré-modernismo. Bosi compreendeu que a classificação dessas obras como pré-modernistas eram inquestionáveis quanto à significação do prefixo “pré”, ou seja, como fenômenos literários temporalmente anteriores ao movimento modernista. O crítico afirmou “que se pode chamar pré-modernista (no sentido forte de premonição dos temas vivos de 22) tudo o que, nas primeiras décadas do século, problematiza a nossa realidade social e cultural” (p.308). Como críticos da estética, da realidade e da mentalidade vigentes à época, esses autores até poderiam ser considerados precursores do Modernismo, mas em relação a “uma ruptura com os códigos literários do primeiro vintênio, então não houve, a rigor, nenhum escritor pré-modernista” (p.332), uma vez que esse chamado Pré-modernismo não contemplou “a dupla direção que os modernistas iriam dar ao movimento: liberdade formal e ideias nacionalistas” (p.336).

Bosi destacou que “Parece justo deslocar a posição desses escritores: do período realista, em que nasceram e se formaram, para o momento anterior ao Modernismo” (p.307) e associá-los não aos modernistas de 22, mas à literatura dos anos 30 que, de acordo com a tradição historiográfica literária, foi denominada de segunda geração modernista. Constituída, principalmente, por obras com tendências neorregionalistas, neorrealistas ou socialistas, por produções de escritores que não eram paulistas e que foram abarcados sob o rótulo de modernistas, foi aí, “Na década de 30, mais moderna do que modernista” (p.378), que o chamado Modernismo atingiu grandiosidade expressiva.

É fato que essa literatura não se desenvolveu autonomamente. Sofreu influências dos modernistas da década de 20, assim como atualizou suas influências realistas e simbolistas. Essa seria, segundo Bosi, a principal contribuição do Modernismo: “a revolução estética que ele trouxe à nossa cultura (...) no nível dos códigos literários que passam a registrar inovações radicais” (p.345). Aí reside a confluência entre escritas e escritores modernos (não apenas modernistas), nas ideias que ligam o pensamento do autor ao seu mundo e ao seu tempo e que se tornaram “matriz dos processos que marcaram nossos ‘inventores’ mais agressivamente modernos, Oswald, Bandeira, Cassiano e, em um segundo tempo, Drummond, Murilo Mendes, Guimarães Rosa” (p.349).

A partir desse momento, segundo Bosi, principia uma produção literária brasileira contemporânea, que “vincou fundo a nossa literatura lançando-a a um estado adulto e moderno perto do qual as palavras de ordem de 22 parecem fogachos de adolescente” (p.383).

Tal contemporaneidade é ampla, não é centralizadora como o Modernismo. Compreende a inovação, mas também a renovação. Abrange as plenitudes tanto da universalidade quanto da unicidade humana. Detém-se na forma, e também na desconstrução das formas; na plurissignificação da linguagem, como na análise precisa da morfologia dos signos literários; aliena-se da realidade, mas também se engaja na transformação social. A literatura contemporânea constitui um amplo leque de experimentações, ou seja, representa a “busca de uma ‘escritura’ geral e onicompreensiva, que possa espelhar o pluralismo da vida moderna; caráter – convém lembrar – que estava implícito na revolução modernista” (p.388), mas que extrapolou os “estatutos” do Modernismo. Assim, qualquer referência a um Pós-modernismo se fundamentaria apenas num marco temporal indicado pelo prefixo “pós”, e não com os sentidos de vigência permanente do Modernismo nem de sua superação total.

As tendências da literatura contemporânea não se restringem a modelos arbitrários ou a caminhos únicos. Fundamentam-se na liberdade de escolha de formas e percursos. Solicitam a construção de uma perspectiva crítica e historiográfica também contemporânea e interagem nessa direção, mesmo que ainda em contracorrente, e não se conformam mais à “visão esquemática a que força o ritmo da exposição histórica” (p.345).

Bosi sugeriu que se ultrapassasse “o vendaval de ismos” e apontou para a necessidade da superação do atual modelo de historiografia literária crítica através do exercício da “análise dialética. Não é necessário forçar o sentido das dependências (...) nem encarecer a extensão e a profundidade das diferenças” (p.385).

Um excerto de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, transcrito no livro de Bosi (p.432), pode ilustrar essa proposição de construção de uma crítica historiográfica fundamentada na reflexão dialógica, em substituição à imposição arbitrária de critérios que restringem a compreensão do fenômeno literário: "As coisas que não têm hoje e ant’ontem amanhã: é sempre. Ai, arre, mas; que esta minha boca não tem ordem nenhuma. Guerras e batalhas? Isso é como jogo de baralho, verte e reverte As pessoas e as coisas não são de verdade. A vida disfarça."


Elenilto Saldanha Damasceno é escritor, professor de Língua Portuguesa e de Literatura e jornalista. Mestre em Letras/Estudos de Literatura e especialista em Literatura Brasileira (UFRGS), licenciado em Letras/Português e bacharel em Comunicação Social/Jornalismo (Unisinos). Autor de "Textos do Novo Testamento nas crônicas de Machado de Assis", de contos publicados em coletâneas e de artigos e crônicas publicados em jornais e revistas.

REFERÊNCIA: BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 43.ed. São Paulo: Cultrix, 2006. 528p.

 

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