“Um nome para o que eu sou importa muito pouco. Importa o que eu gostaria de ser”: uma breve biografia de Clarice Lispector
 



“Um nome para o que eu sou importa muito pouco. Importa o que eu gostaria de ser”: uma breve biografia de Clarice Lispector

por Cinthia Dalla Valle

Se o título deste texto fosse o presunçoso "Saiba quem foi Clarice Lispector", a leitura já começaria com uma falsa esperança. Isso porque podemos até conhecer a linha do tempo de sua vida, saber quais foram as suas obras, ter acesso a algumas de suas falas nas poucas entrevistas concedidas pela escritora, mas saber quem foi Clarice Lispector seria utópico demais, afinal, nem a esfinge do Egito conseguiu decifrá-la (como ela mesma disse em uma de suas crônicas: “Vi a esfinge. Não a decifrei. Mas ela também não me decifrou. Encaramo-nos de igual para igual. Ela me aceitou e eu a aceitei. Cada um com seu mistério”).

Entretanto, a boa notícia é que seus livros, crônicas, contos e cartas dão algumas pistas sobre quem era essa escritora que brincava com os gêneros literários, mas sempre falava sério; que desafiava os padrões da época com sutileza e profundidade ao mesmo tempo; e que até hoje, mesmo por meio de um estilo de escrita hermético, é uma das escritoras brasileiras mais populares e queridas.

Muita gente, após ler suas obras, pode ter a sensação de, enfim, conhecer mais sobre Clarice Lispector. Trata-se ainda de uma esperança ilusória, como a própria Clarice afirma no seu romance “A maçã no escuro” (1961): "Depois que eu acabar de falar, você me desconhecerá ainda mais: é sempre assim que acontece quando a gente se revela, os outros começam a nos desconhecer." O que ocorre depois de ler Clarice é que o leitor passa a se aprofundar sobre ele mesmo, o que, por si só já é um grande passo.

Segundo palavras de Olga Borelli, secretária e amiga da escritora: "Defini-la é difícil. Contra a noção do mito, de intelectual, coloco aqui a minha visão dela: era uma dona-de-casa que escrevia romances e contos. Dois atributos imediatamente visíveis: integri­dade e intensidade. Uma intensidade que fluía dela e para ela refluía. Procurava ansiosamente, lá, onde o ser se relaciona com o absoluto, o seu centro de força — e essa convergência a consumia e fazia sofrer. Sempre tentou de alguma maneira solidarizar-se e compreender o sofri­mento do outro, coisa que acontecia na medida da necessidade de quem a recebia. O problema social a angustiava. Sabia o quanto doíam as coisas e o quanto custava a solidão."

“Um nome para o que eu sou importa muito pouco. Importa o que eu gostaria de ser.” Clarice Lispector


Retrato de Carlos Scliar

Os cem anos do nascimento da escritora em 2020 abriram uma série de comemorações que, felizmente, ainda não acabaram. Assim, vamos aproveitando ao máximo cada informação sobre a vida e as obras de Clarice Lispector, que nos deixou com apenas 57 anos, mas que escreveu um legado muito maior do que este tempo.  

Clarice nasceu em uma família judaica russa em 1920 na cidade de Tchetchelnik, na Ucrâ­nia, quando seus pais, junto com ela e duas irmãs, deixaram a terra natal com destino ao Brasil fugindo da perseguição aos judeus após a Guerra Civil Russa (1918 a 1920). Clarice chegou ao Brasil em 1922, ainda bebê e se chamava Chaya (ou Haya, para alguns) Pinkhasovna Lispector. Mais tarde, ela e toda a família tiveram seus nomes aportuguesados.

A família primeiramente se instalou em Maceió e, três anos depois, em Recife, onde a menina começou a estudar no Grupo Escolar João Barbalho. Quando tinha 9 anos, sua mãe faleceu e, neste período, Clarice teve sua primeira experiência no mundo das letras, com uma pequena peça teatral. Em 1934, quando ela tinha 12 anos, sua família se transferiu para o Rio de Janeiro, onde continuou sua formação.

Em 1943, já na Faculdade de Direito, Clarice inicia seu primeiro romance, “Perto do Coração Selvagem”, que, ao ser publicado no ano seguinte, conquista o Prêmio Graça Aranha. A crítica, surpresa com uma obra sem igual no país, tentou, em vão, encontrar escritores estrangeiros nos quais ela pudesse ter se inspirado. Um comentarista chegou a publicar que um livro como aquele não poderia ter sido escrito por uma moça de 23 anos, alegando, inclusive, que Clarice era o pseudônimo de um escritor homem. 

No mesmo ano, Clarice casou-se com seu colega de turma, Mauri Gurgel Valen­te, e, devido a carreira diplomática do marido, em um período de 15 anos, morou em vários países, como Itália, Suíça, Inglaterra e Estados Unidos.

Em 1946, publicou o seu segundo romance, “O Lustre”, bem recebido pela crítica, mesmo insinuando a influência de Katherine Mansfield e Virgínia Woof. Em 1949, foi a vez de “A Cidade Sitiada”. Em 1952, publicou “Alguns Contos”. No mesmo ano, foi convidada pelo amigo Rubem Braga, criador do gênero crônica, a ser cronista em uma coluna feminina no Jornal do Brasil. Aceitou o desafio mesmo não gostando do estilo. Escreveu na coluna Entre Mulheres de maio a setembro de 1952 com o pseudônimo Tereza Quadros.

Em 1959, após se divorciar, Clarice voltou em definitivo para o Brasil com seus dois fi­lhos, Pedro e Paulo. Começou a trabalhar no jornal Correio da Manhã, na coluna Correio Feminino com o pseudônimo Helen Palmer. Além disso, ela também escrevia na coluna Só para mulheres no Diário da Noite. No mesmo período, lançou “Laços de Família”, obra que ganhou o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro. Em 1961, publicou “A maçã no Escuro”, ganhando o prêmio de melhor livro do ano de 1962.

Mesmo escrevendo em coluna femininas da época, marcadas por assuntos leves e despretensiosos, Clarice sempre conseguia passar um recado mais profundo, de que beleza está ligada à felicidade e aos sentimentos, mas que a mulher não deve esperar pela felicidade, deve criá-la.

“Em Clarice, é como se um livro estendesse a mão para o outro e para o outro e para o outro até tocar o rastro do seu pensamento. Por isso, sentenciar a produção jornalística de Clarice Lispector, principalmente as colunas femininas, como inferior à sua produção literária é tombar no erro de um raciocínio que não permite alçar voo, pois está tão fechado, triste e enrijecido dentro de si que é incapaz de perceber que a porta da gaiola sempre esteve aberta.” Juliana Perez (artigo “As colunas femininas de Clarice Lispector” — blogletras.com)

Em 1964, lançou um novo livro de contos, “A Legião Estrangeira”. Em 1967, passa a escrever uma crônica semanal no Caderno B do Jornal do Brasil. Em 1968, escreve seu primeiro romance totalmente em primeira pessoa, “A Paixão Segundo G.H”. Em 1969, publica o “Livro dos Prazeres”. Em 1975, reúne uma nova coletânea de contos, “Felici­dade Clandestina”.

Entre 1976 e 1977, quando morre de câncer, Clarice termina seus dois últimos romances, “A Hora da Estrela”, publicado em 1976, e “Um Sopro de Vida”, editado no ano seguinte de sua morte.

Em 1981, Olga Borelli publicou “Esboço para um Possível Retrato”, em que trans­creve algumas cartas da escritora. Em 1984, as suas crônicas escritas em jornais são reunidas no volu­me “A Descoberta do Mundo”.

O que dizem sobre ela:

O escritor Affonso Romano de Sant´Anna, marido da escritora Marina Colasanti, conta que um dos traços mais marcantes da personalidade de Clarice era a lucidez. "Ela dava pareceres sobre obras a serem publicadas e disse que não gostava de um certo livro não, mas que ele merecia ser publicado porque tinha quem gostasse. Ela não escrevia daquele jeito, mas defendia o direito de o livro ser lido".

“A busca dela é pelo entendimento das coisas. Ela sempre se definiu como uma escritora amadora, no sentido de não ter a obrigação de escrever, não ser um trabalho”. Pedro Vasquez — editor das obras de Clarice Lispector.

“Meu olhar está voltado para o questionamento do que significa comemorar o centenário de uma mulher escritora no Brasil. É uma questão que tem a ver com o nosso tempo. Hoje se fala muito sobre a mulher empoderada, mas o que está acontecendo atualmente é resultado do trabalho das mulheres no passado. Clarice e outras mulheres de sua geração foram pioneiras, abriram caminhos” Teresa Montero, biógrafa autora de “Eu sou uma pergunta”.

Obras publicadas de Clarice Lispector:

  • Perto do Coração Selvagem (Romance — 1943)
  • O Lustre (Romance — 1946)
  • A Cidade Sitiada (Romance — 1949)
  • Laços de Família (Contos — 1960)
  • A Maçã no Escuro (Romance — 1961)
  • A Paixão Segundo G.H. (Romance — 1964)
  • A Legião Estrangeira (Contos — 1964)
  • O Mistério do Coelho Pensante (Infantil — 1967)
  • A Mulher que Matou os Peixes (Infantil — 1968)
  • Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres (Romance — 1969)
  • Felicidade Clandestina (Contos — 1971)
  • Água Viva (Romance — 1973)
  • A Vida Íntima de Laura (Infantil — 1974)
  • A Via Crucis do Corpo (Contos — 1974)
  • Onde Estivestes de Noite (Contos — 1974)
  • A Hora da Estrela (Romance — 1977)
  • Quase de Verdade (Infantil — 1978)
  • Um Sopro de Vida (Romance — 1978)
  • Para Não Esquecer (Crônicas — 1978)
  • A Bela e a Fera (Contos — 1979)
  • A Descoberta do Mundo (Crônicas — 1984)
  • Como Nasceram as Estrelas (Infantil — 1987)
  • Minhas Queridas (Compilação — 2007)

Além da literatura:

Além de escrever literatura, Clarice também pintava quadros e escrevia catálogos de artes visuais. Apesar da imagem de reservada e tímida, ela incentivava o diálogo entre escritores latino-americanos e fazia parte de diferentes grupos literários. As cartas trocadas com vários escritores como João Cabral de Melo Neto, Rubem Braga e Fernando Sabino, apenas para citar alguns, contam um pouco sobre a história do Brasil e do mundo, sobre desafios literários e sobre a própria Clarice.

"Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho. Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever." Trecho escrito por Rodrigo, narrador fictício de “A hora da estrela”.

 

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