O cidadão ilustre
 



O cidadão ilustre

por Caroline Rodrigues

Há algum tempo atrás escrevi um texto para esta mesma coluna chamado “Obra e pessoa”, que discute a relevância de sabermos sobre a biografia de um autor para relacioná-la aos seus textos. Acho um assunto bem interessante e acabei voltando a ele por conta de ter assistido recentemente ao filme argentino “O Cidadão Ilustre”, lançado em 2016.

No centro da trama está o escritor Daniel Mantovani. Ele vive na Europa há 40 anos e, depois de ser agraciado com o Prêmio Nobel, uma carta chega convidando-o para ir ao povoado onde nasceu, na Argentina, e receber o título de cidadão ilustre. Antes disso, ficamos sabendo que o artista está recusando todas as ofertas de aparição pública, vindas de várias partes do mundo. O seu discurso ao receber o Prêmio Nobel dá a entender que não seguirá publicando pois havia atingido o ápice na sua função. Ainda assim, ele resolve aceitar o convite e vai até a pequena cidade.

Lá, acontecem os mais variados tipos de desventuras, que começa com um pneu furado a caminho da cidade, que fica a muitos quilômetros da capital Buenos Aires. Sem estepe, sem celular, no meio do nada, ele e o motorista se sentam em frente a uma fogueira e este lhe pede que conte uma história. Esta cena traz um aspecto muito importante sobre o personagem principal: este escritor sabe mesmo narrar algo que prende, que tem enredo e conflito. Ele é um artista e isso se torna fundamental para a análise que proponho aqui.

Ao final do filme, já de volta à Europa, o escritor aparece sentado atrás de uma mesa, sendo entrevistado e fotografado, sorrindo. Ao lado, o banner mostra a capa de um livro e há um exemplar sobre a mesa. O editor faz a apresentação e o escritor lê uma pequena parte da obra que nos mostra ser sobre os acontecimentos da viagem ao povoado. Ao final, a cena mostra duas perguntas dos repórteres e uma delas fala sobre o fato de o autor ser o protagonista da história e a outra é sobre o quanto há de real e de fictício na história. Depois de questionar os conceitos de verdade e ficção, a conferência acaba e o escritor posa para fotos, direcionando o olhar para diferentes lados até permanecer no centro, olhando direto para a câmera. Pareceu a mim um desafio: e então? Você assistiu a um filme que narra os fatos como eles aconteceram ou você assistiu à história contada no livro?

Este final me lembrou muito o livro “A louca da Casa”, da escritora espanhola Rosa Monteiro, considerado uma obra autobiográfica romanceada. Dentro do livro ela conta que teve um romance com um ator famoso, a quem ela chama de M.. Ela narra o encontro com M. três vezes durante o livro, em três capítulos diferentes, e em cada uma há alterações significativas na narração que até contradizem a versão anterior. Lembro que ao ler a primeira versão, fiquei com vontade de procurar no Google e descobrir quem era aquele ator famoso. Porém, quando li a segunda versão, já não sabia mais em quê acreditar. As duas narrativas eram possíveis. E quando cheguei à terceira, ficou pior ainda.

A pergunta que fica é a mesma que Daniel Mantovani faz para o repórter: Que diferença faz saber se é real ou não? O que é real ou verdadeiro neste mundo? Ele fala que a realidade é apenas uma interpretação de algo que aconteceu, dentre tantas possibilidades. Tanto Rosa, uma pessoa do nosso mundo real, quanto Daniel, um personagem escritor, são mestres no que fazem: narrar uma história. Eles sabem que a interpretação da verdade deles precisa estar dentro do que se espera de um bom romance, daqueles que as pessoas não vão largar até saber como acaba. Eles sabem que eles próprios como personagens de seus romances precisam se tornar personagens de ficção, com determinadas características que os tornam parte do mundo da literatura. Sabem o que dizer e o que não dizer, e eu poderia elencar muitos outros aspectos das narrativas de ficção de que os melhores escritores se valem.

Se você escreve, com o que deve se preocupar quando incluir aquela cena da sua vida em uma narrativa de ficção? Somente com a qualidade ficcional. Se ela está bem escrita, se encaixa com perfeição na sua história, se torna o seu personagem mais humano, se contribui para o conflito. E se alguém perguntar se aquilo aconteceu “de verdade” ou não, você pode dizer que sim, ou pode usar as palavras de Daniel Mantovani. Afinal, a arte está a serviço da vida, não é mesmo?

 

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