Vítimas da velocidade
 



Vítimas da velocidade

por Rubem Penz

Quando escrevi “Vítimas da velocidade”, primeira crônica publicada em jornal de grande circulação (Zero Hora de 04/10/2004), e reproduzida abaixo, nossas rotinas recém contemplavam grupos de e-mail. À época, defendi a tese de a velocidade das palavras ser responsável por muitos desentendimentos. Ao mesmo tempo, imaginei que bastaria bom senso e prudência para fazer circular nosso discurso sem acidentes e vítimas. De lá para cá, a velocidade só aumentou e já não há mais riscos: vitimar – ou vitimar-se – agora é certeza.

Uma das razões para isso é o choque frontal. Ou seja, quem emite opiniões em determinado sentido será imediatamente abalroado por um ponto de vista contrário. E isso não será um acidente: será um propósito. Algo como “bato em você para que este raciocínio em desacordo com minha via de pensamento não prossiga”. De colisão em colisão, perdemos amizades, núcleos familiares, ambientes laborais saudáveis. Tudo em questão de segundos.

Mas aí quem não deseja choques engata uma defensiva marcha-a-ré. Péssima decisão: comparsas virão com igual urgência e, ao evitar bater de frente, colide-se com outros que também imaginam ter as ideias sentido único. Surpresa: a fúria não poupa sequer aliados, ou os dispostos a recuos estratégicos e ponderações sensatas. Algo tipo “não está comigo, está contra mim”.

A pior viagem, contudo, ainda está por vir... Pobre de quem imagina orientar seu raciocínio em transversal às correntes desta infinita e polarizada highway. O fluxo constante e feérico não comporta pausas e ninguém parece disposto a construir pontes para que se possa cruzar acima da disputa. Logo, ou ficamos calados à beira da estrada (esperando a chance de falar algo que faça outro sentido), ou trombaremos com ambos os lados. Creia em mim: whatsapp não tem freio.

E agora, não há saída? A boa notícia é que, se você leu o texto até aqui e ainda não está com vontade de brigar comigo, ainda que pareça não existir solução, esperança ainda há.


Vítimas da velocidade*

Por mais relevante que seja o assunto, não vou falar do trânsito de automóveis, como sugere o título. A velocidade a que me refiro é a das palavras, da qual todos somos vítimas cotidianas.

Com o inegável avanço das comunicações, falamos e escrevemos muito mais do que nossos antepassados bem recentes. Mais, não melhor. Apressados, trombamos com a educação, com a Língua Portuguesa e com a prudência. Ou com todas ao mesmo tempo. Isto não significa que ninguém mais é educado, culto ou precavido. A culpa é da velocidade.

Ao telefone, dificilmente perdemos segundos preciosos trocando bom-dia, perguntando pelas crianças, investigando o gosto do interlocutor para, numa conversa futura, surpreendê-lo com uma palavra atenciosa. Em regra, vamos direto ao assunto e saímos correndo. O sorriso e a graça, que são vistos pela linha, sim!, estão falsos ou ausentes.

Um fenômeno parecido habita a internet. Elaborar orações com verbo, sujeito e predicado, com ideias claras, forma agradável e pontuadas conforme reza a cartilha (ou mais o próximo o possível), tornou-se perda de tempo. Escrever um texto inteiro na língua pátria e, por que não?, de modo respeitoso, virou raridade. Ao inferno com as maiúsculas e minúsculas! Azar se abreviamos tudo! O negócio é ser compreendido, rápido!

Porém, a mais grave defecção resultante da velocidade acelerada é a da prudência. A morosidade, que um certo formalismo implica, faz nascer, como efeito colateral, um certo tempo de reflexão. Assim, se pensarmos em quem chega ao telefone, buscando a imagem da pessoa, sua personalidade e características, além de gastar poucos instantes em considerações preliminares, dificilmente vamos lhe atropelar com respostas curtas e ásperas. Preocupados em escrever com clareza e correção, a margem para a grosseria em mensagens eletrônicas se torna muito estreita. Além do mais, quem pretende expressar-se bem, cultiva o hábito salutar de ler e reler antes de enviar um texto. Com isso, palavras mal pensadas têm a chance do aborto terapêutico.

Aproveitando o gancho automobilístico, citado no início do texto, penso que apenas pilotos de elite saem ilesos desta corrida em que se transformou a comunicação. Eles existem e se tornam cada vez mais bem-sucedidos. Mas são exceções. A maioria, na qual me incluo, vive em situação de risco, pronta para derrapar numa frase, colidir com a boa educação ou hierarquia e atropelar o idioma. Eu sei que é impossível andar devagar dentro da autoestrada em que se transformou nossa rotina. A solução, se é que existe mesmo, seria tentar transitar nas simpáticas vias laterais da vida. Com muito cuidado: nelas, os interlocutores estão mais atentos e a velocidade das palavras gera multas!

*Crônica publicada no jornal Zero Hora em 04/10/20014 e no livro O Y da questão e outras crônicas (Literalis, 2008)

 

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