O livro e sua irrequieta mobilidade
 



O livro e sua irrequieta mobilidade

por Waldísio Almeida de Araújo

O objeto “livro” é um ente aristotélico, uma substância permanente, ocupante de um lugar no espaço e de uma duração no tempo, quer se manifeste em forma de papiro egípcio, tabuinha de argila mesopotâmica, pergaminho grego, códex medieval, brochura renascentista, quer venha a ser impresso a partir de um arquivo PDF distribuído via Internet.

Não obstante, sua teimosa permanência parece escapar do eterno devir das coisas, logo, do caos, do esquecimento, da morte. Afinal, a própria permanência de palavras nele comumente encontráveis (“vida”, “morte”, “amor”...) parece desafiar o tempo e as traças e se consolidar como templos da eternidade nas mãos, na mente e no coração dos homens. Mas para o bom leitor cada frase inscrita – ou palavra ou fonema – somente em aparência escapa ao texto do eterno devir. E este "Eterno Contexto" é, por definição, incessantemente mutável, paradoxalmente indefinível por definição.

As ideias, nós as queremos essencialmente duráveis, mesmo eternas, monumentos da busca humana por manter a todo custo a estabilidade de conceitos e palavras contra o eterno e insaciável fluxo caótico do Real – em si mesmo nem verdadeiro nem falso, nem belo nem feio, nem bom nem mal. É resistência, ainda que vã, e isso é verdadeiro, belo e bom.

Juntem-se “devir”, "eterno" e “ser”, e teremos, enfim, o Livro, esse pedaço de imortalidade ao mesmo tempo finito (por ser “pedaço”) e infinito (por ser "imortalidade"). Participa da tragédia de ser escrito de uma vez por todas para ser lido e relido para sempre sob formas eterna e irremediavelmente diferentes de si mesmas. Por isso se torna o que é em outros e outros livros, a despeito da sua materialidade ou de um qualquer pretenso sentido “denotativo” de suas palavras.

Uma frase do Banquete de Platão ou da Bíblia permanecerá materialmente a mesma frase – quer seja repetida à exaustão por Agostinho, por Da Vinci ou por Bertrand Russell – ao menos enquanto houver matéria (“mídia”) em que se deixe registrar-se. Mas estará enraizada de cada vez em um contexto diverso do original e que jamais se estabilizará como uma pretensa origem imutável de todos os outros contextos que lhe sucederam. E tampouco no futuro haverá identidade, pois para cada momento que vier será imprevisível que contextos futuros poderão ser assimilados ao atual significante.

(Há, decerto, retorno e repetição, mas não há uma forma única de retornar-se e repetir-se. Mesmo as formas de mudar mudam; como em Camões, "Não se muda já como soía").

Reescrita, eterno retorno, devir incessante que se imobiliza e fossiliza, o livro é ser que devém e nunca se completa. Nunca se terminou de escrever um livro, mesmo os sagrados, mesmo os definitivos, mesmo os imortais, mesmo os perfeitos. Deixa-se captar apenas por um instante fugaz e poucas vezes, sempre recusando a si mesmo em sua própria autoafirmação.

Na arte da fotografia as imagens são aprisionadas no mesmo movimento que as liberta, o que lhes confere poder, beleza e verdade. Mas é mentira dizer que uma imagem vale mil palavras, pois imagem evocada e imagem vista são coisas heterogêneas. Na arte da literatura, o escrito se refere a imagens não vistas, a "imagens imaginadas". Ambas impõem o fascínio, uma relativa fixação da atenção, mas nada justifica dizer-se que a fotografia nos mostraria "denotativamente" um real do qual as imagens "conotativas" da literatura nos desviariam. Até porque fixar nossa crença, em termos ideológicos, pode significar alienarmo-nos mais, e nesse sentido uma ideia acompanhada de uma imagem documental pode mentir mais que mil palavras.

A linguagem gostaria de neutralizar a dissolução das coisas, tornar estático o devir, ver como ordenado o caótico, imaginar-se como infensa às ideologias, expressar compreensivamente ou explicativamente o inefável fluir. Mas somente faz todas essas coisas de forma contraditória e equívoca: repetindo-se como algo perene enquanto se reconhece a si própria como devir (daí os mitos sobre a multiplicação e dispersão das línguas). Mas só pode assumir-se como devir se reconhece este como única permanência possível. O ser da linguagem é impossível Idêntico, na medida em que se move velozmente em busca de dizer o que não pode ser satisfatoriamente dito.

No fundo jamais escrevemos nossos livros, assim como não formamos nossos filhos, esses rebentos da nossa vontade incompleta de viver. Talvez o universo inteiro escreva pelas pontas dos nossos dedos. No final, somente nos resta um problema, aliás, insolúvel: por que escrevermos livros sobre o universo, se as palavras e as coisas jamais se reconciliarão?


* Waldísio é funcionário público federal, eventual programador de software (HTML, CSS, PHP, algum Python) e devorador trilingue (francês, inglês, espanhol) de livros e artigos de Filosofia, História, tópicos de Física moderna, História da Arte e Literatura.

 

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