É possível existir relação entre jornalismo e literatura? Quando associamos esses gêneros imaginamos que há uma oposição entre eles. Porém, há autores, como Tom Wolfe, Norman Mailer, Truman Capote e Gay Talese, precursores deste conceito, que os uniram, lá em meados do século XX.
O jornalismo literário veio como uma alternativa a um jornalismo imediatista de disseminação rápida de informações. Em um meio no qual a mídia e a audiência são importantes, o movimento transforma o envolvimento do público com o conteúdo. Segundo o jornalista Felipe Pena, essa proposta potencializa os recursos já existentes no jornalismo, no entanto proporciona outra percepção dos fatos. Assim, o texto jornalístico-literário utiliza-se de dois gêneros independentes para expressar histórias com focos em pessoas reais que, muitas vezes, passariam despercebidas. É isso o que a jornalista, escritora e documentarista Eliane Brum faz em "A vida que ninguém vê".
A escritora gaúcha publicou oito livros no Brasil e participou de coletâneas de crônicas, contos e ensaios. Formou-se pela PUCRS em 1988 e trabalhou como repórter do jornal da Zero Hora, de Porto Alegre, e da Revista Época, em São Paulo. Desde 2010, faz projetos com populações tradicionais da Amazônia e das periferias de São Paulo. Desde 2013, tem uma coluna quinzenal, em português e espanhol, no El País Brasil e El País América. Desde 2018, mantém uma coluna quinzenal na editoria de Internacional do jornal El País, na Espanha. Em 2022, lançou o veículo jornalístico trilíngue Samaúma. Seus principais livros são: A vida que ninguém vê (2006), Uma duas (2011) e A Menina Quebrada (2013).
A obra "A vida que ninguém vê" (2006) é uma coletânea de crônicas que ganhou o Prêmio Jabuti 2007 de melhor livro de reportagem. Nela, Eliane relata histórias de pessoas reais. São 21 narrativas que têm, em média, de duas a três páginas. No início de cada uma há uma foto com uma referência, seja personagem ou objeto, da história com um quadrado focado e o resto da imagem desfocada. Já no final de cada conto, há uma data.
A crônica "Adail quer voar", por exemplo, fala sobre um homem que trabalhou anos no aeroporto, mas nunca teve a oportunidade de voar de avião. Tornou-se "o negão das bagagens"; tão perto das asas do avião, mas sempre tão longe de realmente chegar.
"Adail viu o mundo e o mundo nem sempre viu Adail. Mudou o mundo e mudou Adail. Mas nem o mundo nem Adail mudaram o suficiente para encolher a distância entre o carregador e o avião. Porque, aos 62 anos, Adail segue sendo o que o doutor grita lá da porta do desembarque: "Ô, negão". E o mundo segue sendo do doutor. Mas Adail, ah Adail, Adail não desistiu de voar"
De forma envolvente e emocionante, a jornalista nos mostra as sutilezas da vida cotidiana em um jornalismo subjetivo e humanizado. Esse texto literário nos permite conhecer pessoas apagadas socialmente. Eliane deu voz às personagens reais e deu a nós, leitores, informações que não esqueceremos, diferentemente daquelas diárias dos jornais.
Ainda assim, como Pena diz, algumas características do jornalismo tradicional são mantidas, como observação atenta dos fatos, contextualização das informações e dados que fundamentam a história, mas com outra visão da realidade, pois confere a ela um brilho.
Eliane Brum fala que a rotina encobre a verdade. Ela diz que nossos olhos veem o que é programado para eles verem, por isso nossos olhos são treinados e cegados por camadas de rotinas. Para ela, reconhecer o outro é exercitar para enxergar de outras maneiras. Há uma arte de olhar e esse é um ato de silêncio.
Termino com um trecho do final do seu livro: "Quem consegue olhar para a própria vida com generosidade torna-se capaz de alcançar a vida do outro. Olhar é um exercício cotidiano de resistência".