Os olhos de Narcisa contemplavam, vidrados, a fotografia no porta-retratos de moldura vermelha, na penteadeira do quarto. Só desviava o olhar para comer, dormir ou usar o banheiro. Não proferia nenhuma palavra. Atena, a filha única, tentava persuadi-la de todas as maneiras, mas não lograva êxito. Ela aproveitou a breve ausência da mãe para bisbilhotar: na tal fotografia, ela e sua mãe deitadas na grama, olhando uma para outra com sorrisos leves. Só tinha um detalhe: Atena estava vinte anos mais jovem.
Ela recolocou o porta-retratos no devido lugar, dirigiu-se ao seu quarto e sentou-se na cadeira, na tentativa de lembrar a ocasião da foto: recordava de querer convidar uma amiga para o piquenique, mas sua mãe se recusou. Implorou que passeassem apenas elas duas. Discutiram efusivamente naquele dia, menos no momento da fotografia. Suspirou. Precisava retomar a estória que estava escrevendo, dar aquela ligadinha na hora do almoço para sua namorada e pagar boletos. Estes se avolumavam em sua escrivaninha enquanto a mãe reclamava dela ter largado o curso de Direito e o estágio promissor no centro de São Paulo. Já era a segunda faculdade que desistia. A adulta de trinta anos considerava-se confusa profissionalmente, mas apostava agora na ideia de escrever como ofício, porque, eram ali, naquelas palavras oriundas de sua mente fantasiosa, que ela se sentia mais próxima de sua essência.
- A minha mãe está na mesma posição, Ártemis. Às vezes se agacha no chão e abraça as duas pernas numa posição fetal, sabe? Parece até feitiço! - preocupou-se Atena.
- Amor, talvez seja melhor levá-la ao médico...ou à benzedeira - sugeriu a namorada.
Ártemis era jornalista e escrevia numa coluna feminista de uma revista famosa. Depois que leu esboços de um conto da namorada, incentivou-a a escrever mais. Ela não conhecia Narcisa. Supunha o que se passava com ela, mas definitivamente não poderia compartilhar com Atena.
Exausta daquela situação, Atena saiu do quarto com passos pesados e acelerados, a respiração ofegante, adentrou o quarto da mãe, pegou, de súbito, o porta-retratos e o arremessou em direção ao chão, que se espatifou em mil pedaços. O torpor no semblante da mãe havia se desmanchado, para alívio de Atena. Mas, de repente, ela se agachou, recuperando a fotografia intacta em meio aos cacos; abriu a gaveta do armário da cozinha e pegou uma caixa de fósforos. Atena se petrificou enquanto sentia o cheiro de papel queimando. Narcisa fitou-a com seus olhos grandes e negros, dos quais saíam lágrimas de sangue:
- A porta da rua é serventia da casa.
Isis Furtado Mantovanelli, bióloga, professora da rede pública municipal de São Paulo (SP), produtora cultural e apaixonada pela potência que representa a palavra, seja em verso ou prosa. Participa do Curso Online de Formação de Escritores.