Estamos sentadas na sala de espera do consultório do médico geriatra de Ruth. O espaço é confortável e decorado com bom gosto, há um janelão que me permite ver o mar azul de um dia ensolarado de outono. Enquanto aprecio a paisagem, Ruth assiste pela TV ao show do seu cantor preferido. Ri e conversa com ele.
- O que ele fala de tão interessante? - pergunto.
Ela me olha surpresa e diz: - Não está vendo, moça? Ele flerta comigo.
Volto ao mar. Me emociono, tenho muita saudade de Ruth.
Essa mulher de personalidade forte e autoritária começou a se desligar desse mundo há oito anos. No início eram pequenos esquecimentos, falas que nada tinham a ver com o assunto da conversa, falta de vontade de sair de casa, dores. Muitas dores, nas pernas, nos ombros, nos olhos. A evolução da doença foi lenta, mas contínua, todos os dias perdíamos um pouco dela.
A família demorou a aceitar que, cada vez mais, teriam que se virar sem um consentido domínio essencial para a vida de todos. O marido, aos poucos, foi sendo chamado de pai e os filhos homens, de maridos. Ruth construía uma outra vida, enquanto a da família desmoronava pela falta que ela fazia. Esqueceu-se de tal forma de quem era que passou a ter mais prazer no que se tornara. De repente, tinha uma displicência infantil que nunca se permitiu
Mas, hoje viemos ver o médico porque percebemos que ela está se deprimindo com a lembrança de Isabela, a filha que morreu no parto. Conta que quando pegou o pequeno corpo nos braços, ela suspirou e se foi. E Ruth chora tanto que não quer comer. Tento consolá-la e pergunto como era Isabela.
- Era uma linda menina, e eu nunca, um dia sequer, deixei de amá-la.
Volto os olhos para o mar. Nunca sei se falo a verdade para Ruth. Tenho medo de que ela se assuste e que piore ainda mais da depressão. Cuido dela com muito carinho, tenho tanta saudade de Ruth.
O show do cantor preferido está terminando no aparelho de TV. Fico aflita, se o médico não nos chamar agora, tenho certeza de que ela vai começar a falar de Isabela. E vai chorar.
A porta do consultório se abre, estou aliviada, pois vamos ser atendidas. O doutor Joaquim nos recebe com um grande abraço em Ruth e um olhar cúmplice para mim.
Nos acomodamos em duas cadeiras e ele me pergunta
- E então Isabela, como anda a sua mãezinha?
Claudia Vieira é formada em Letras pela UFRJ e em Artes Visuais pela faculdade Bennett, com pós-graduação em Arte da América Latina. É avó do Felipe, mãe do Dudu e do Nando, e mulher do Rubens há 38 anos. Cheia de casos para contar, escreveu alguns na coletânea Rio 7×7, organizada pela escritora Nilza Rezende e com prefácio de Suzana Vargas, fundadora do Instituto Estação da Letras. Está adorando inventar na Metamorfose, "afinal, quem percebe um caso, escreve um conto", diz Claudia. Participa do Curso Online de Formação de Escritores.