Elisabeth Silva, 43 anos
 



Contos

Elisabeth Silva, 43 anos

Branca Boson


Meu nome é Elisabeth. Elisabeth Silva, porque não uso mais o meu sobrenome nobre. Não tenho nada para contar sobre mim, minha história não deve ter interesse, sou inocente mesmo que muita gente ache que eu matei o meu marido. Posso te contar, mas seria a verdade sem graça, e não o empolgante enredo do meu julgamento. Melhor seria você pedir pra conversar com alguém da minha família, com outra pessoa. Se cresci num bairro classe média, de pais tradicionais, com bons amigos de uma das melhores escolas da cidade e me casei apaixonada aos 35 anos, você mesmo pode ver que não tenho nada de excitante pra contar da minha vida. Os meus ex-amigos terão versões interessantes de meu casamento nada mais que tedioso. Eles darão motivos trágicos para a minha viuvez. Eu não posso te dar nada melhor.

Tenho segredo nenhum pra contar. Primeiro, que minha vida foi toda devassada na procura de um sinal anterior de que uma mulher assim como eu já era uma assassina. A sociedade tem asco à ideia de que a pulsão de matar é latente em todos nós. Prefere viver na doce ilusão de que o ser humano é bom e que a pobreza é que o transforma para o mal. Ai, ai. Vai lá, pega meu processo para ler, mas prepare o estômago para as declarações das testemunhas. Eu quase vomitei. Patética encenação de uma verdade melhor que a realidade. Mas eu entendo. Não te disse que minha versão é sem graça?

Meu marido era lindo e amoroso, vivia pra mim, para adivinhar os meus desejos. Eu não podia formular uma frase sequer com "eu queria", ou mesmo "quem sabe a gente", que ele, atento, realizava. Um porre! Ah, como os amigos morriam de inveja de nós. E, a cada testemunho sobre a nossa vida de casal, eles descreviam detalhes que os colocavam como iluminados conhecedores do mal que todos procuravam em mim. O juiz viu isso. Acho que percebeu o jogo de espelhos. Essa coisa toda de julgamento é uma grande farsa.

Não ser apaixonada por um homem assim seria loucura. Você não acha? A verdade é que as pessoas nunca falam do tesão de um desejo não realizado. A morte já me acompanhava desde o dia do meu casamento. Depois virou uma sombra, que meu marido viu, mas não soube o que era. Um pouco burrinho ele. Não burro, é...sem sutileza, sabe? Argh, como isso me irritava! Daí que começou a ficar desesperado, perdeu a mão com a única coisa que sabia fazer direito, e começou a me afogar em afagos.

Veja bem, num julgamento como esse há um acordo tácito sobre limites de punição para alguém da minha classe social. Tudo se enreda e conspira para um fim que não perturbe o conceito de meritocracia que, no nosso país, você sabe, é bastante deformado. O que quero dizer é que, simplesmente, não é aceitável que alguém que ascendeu como eu, através de um marido assassinado como ele, tenha uma trama banal. Mas faltaram elementos nobres, uma explosão de iate, um corpo encontrado na jacuzzi da mansão do Algarve, algum amante famoso. Nem de origem humilde eu era. Nisso, meu advogado foi mestre, deixou a banalidade para o final. A história murchou. Eu só podia ser inocente.

Confesso que às vezes, quando estou em Como, não sei, acho que a paisagem da Itália tem um efeito em mim, eu penso que podia simplesmente ter me separado, dito a verdade, que já não o suportava mais. Podia. Mas eu não aguentaria ver a sociedade dizer "Ah, melhor assim! Ela nunca foi do nosso meio". E os maridos egocêntricos iam olhar para suas esposas perturbadas com aquela cara de eu-te-disse. Essa alegria eu não ia dar. Você consegue me entender? A gente apenas aturava aquelas pessoas pelo prazer de contrariá-las, todos os dias, com nosso casamento perfeito. O Marcelo preferia morrer a manchar sua imagem de marido exemplar. Preferia morrer. Então, eu só retribuí o que ele fazia por mim.

 

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