Juliana e Eu (uma homenagem ao texto Laços e Nós)
 



Contos

Juliana e Eu (uma homenagem ao texto Laços e Nós)

Ana Beatriz Pereira


Eu tinha uns três meses de contrato no abrigo quando Juliana chegou. Ela, dois anos de idade na certidão; dez meses, se tanto, na compleição física, e ainda menos na capacidade de se mover. Mas foram os olhos de Juliana que mais me chamaram a atenção. De alguma maneira, eu me vi naqueles olhos desbotados pela falta de vontade de olhar. Eu, trinta e poucos anos na certidão, alguns quilos a mais, outros centímetros a menos, movendo-me aos trancos por aí, emprego em emprego, numa vida sem razão. Não mais, desde que Juliana chegou! Desde que ela cruzou a grande porta de madeira escura, trazida num colo estranho.

Naquela casa de desencontros, tomei-a para mim. Dei a ela as minhas palavras, a envolvi com os meus desejos, com os meus braços passei a movê-la - Juliana filha, Juliana irmã, Juliana amiga, Juliana mãe. Eu Juliana.

E Juliana, não sei se por desilusão ou vontade, aceitou que seu minúsculo corpo passasse a me guardar inteira. Ela sempre retribuiu a minha dedicação. Muitas vezes, ao banhá-la ou alimentá-la, ou quando nos deitávamos juntas para fazê-la adormecer, sentia o roçar da sua mão em meu braço, no meu cabelo, uma intenção de fala em seus lábios. Mas havia manhãs em que recusava ajuda para sair da cama, arrastava-se dali para um canto e lá ficava, dedo polegar na boca, ausente de tudo, ausente de mim. "Por quê, Juliana? Por quê?", eu perguntava. E eu mesma tratava de encontrar respostas: deve estar doentinha, já passa; será que não dormiu bem?; ela gosta de mim, eu sei, daqui a pouco vem para o meu colo. "Vem, Juliana, vem..."

Dia a dia, semana após semana, e já se vão dois anos de convívio, eu e ela, aqui nesta casa de passagem. Passagem? Então, por que poucas crianças chegam a cruzar de volta a porta de madeira escura? Homens e mulheres se candidatam para as visitas mensais, talvez até venham com boas intenções, mas eu leio nos olhos deles, nos corpos deles. No fundo, não querem crianças reais - pretas demais, magras demais, velhas demais, doentes demais; inteligentes de menos. Eles chegam, e partem de mãos vazias, para nunca mais voltar. Esquecem, apagam da memória, desatam os arremedos de laços construídos naqueles cinquenta minutos de convivência.

Não, não é exagero meu. Hoje foi assim, mais uma vez, na visita de um casal. O homem, desajeitado que só, nunca deve ter convivido com crianças; a mulher, mais velha, carregando o peso de não poder mais ter filhos. Eu sei, eu vi. Juliana também percebeu. Logo que eu a deixei na sala de brinquedos, arrastou-se para o canto, dedo polegar na boca. Fiquei perto da porta, vigiando tudo. O que aquela senhora pretendia com os joguinhos de bola, com os convites para amarrar o cadarço dos tênis? "Cuidado, Juliana!" "Resiste, Juliana." "Só mais alguns minutos..."

Quando a peguei no colo ao final da visita, reatamos nossos laços, apertamos os nós que nos uniam. Ainda seríamos só eu ela.


Ana Beatriz Pereira é carioca, Pedagoga e Mestre em Educação. Nas últimas três décadas, trabalhou como professora e supervisora em escolas de Educação Infantil.


Clique abaixo para conhecer o conto Laços e Nós, de Stela Rates


 

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