Na sua obra icônica "O herói de mil faces" (1949), Joseph Campbell apresenta um modelo narrativo baseado em padrões mitológicos e religiosos, replicado em diversas culturas e localidades ao longo da história. Esse modelo é conduzido pela figura do herói, que passa por uma longa jornada de transformação.
Mas o que seria um herói? No artigo "Jornadas Fantásticas, o escritor, professor de escrita criativa, doutor em Educação e autor do recém-lançado "Guia de Literatura Fantástica" (Metamorfose, 2023), Duda Falcão, explica que:
"Segundo diversos dicionários, o herói é um filho nascido da união de um ser divino com um ser humano, sendo assim, na mitologia, é considerado um semideus após a sua morte. Têm uma posição intermediária entre os homens e os deuses. Também é o indivíduo que se destaca por grandes atos de coragem ou feitos guerreiros que acabam rendendo enorme admiração e notoriedade. Muitas vezes, mas nem sempre, apresenta poderes sobre-humanos e combate o mal, sendo um sujeito de comportamento exemplar. Além disso, é sinônimo de protagonista ou personagem principal em uma narrativa literária" (Falcão, p. 101).
Apesar de Campbell não fazer distinção de gênero ao se referir ao arquétipo do herói, ainda assim imperava o protagonismo masculino em "O herói de mil faces". Às mulheres cabiam as funções secundárias de par romântico, cuidadora, deusa, oráculo ou vilã sedutora. Essa fórmula foi reproduzida durante décadas em vários gêneros da literatura e do cinema, como analisa Duda Falcão (p. 105):
"Personagens femininas, em geral, serviam como pares românticos e para serem salvas pelo herói ou, ainda, para representar o arquétipo da Femme Fatale, como se vê na literatura policial do período ou no cinema noir ".
Incomodada com essa questão, na década de 1990, a psicóloga e escritora norte-americana, Maureen Murdock, elaborou um modelo alternativo ao de Campbell, mais próximo do universo feminino, que colocava as mulheres como protagonistas em suas próprias jornadas: a "Jornada da Heroína". Em um trecho do artigo The Heroine`s Journey, de 2016, a autora explica que:
"A jornada da heroína começa com uma separação inicial dos valores femininos, buscando reconhecimento e sucesso em uma cultura patriarcal, experimentando a morte espiritual e voltando-se para dentro para recuperar o poder e o espírito do sagrado feminino. Os estágios finais envolvem um reconhecimento da união e do poder de sua natureza dual para o benefício de toda a humanidade".
Murdock foi aluna de Campbell e se inspirou no modelo dele para escrever a "Jornada da Heroína". Além disso, ela atendia muitas mulheres em seu consultório de psicologia e observou que os principais dilemas trazidos pelas pacientes não estavam presentes na jornada do herói. Apoiada nisso, Murdock estabeleceu dez estágios para a jornada da heroína, representados na figura abaixo:
Em seu artigo, Duda Falcão (p.120-122) descreve cada estágio:
1. Separação do feminino: conforme Murdock, no artigo citado anteriormente, a jornada da heroína é fundamentada na experiência de mulheres que se identificaram e se aliaram intimamente com os seus pais ou à cultura masculina. Nesse sentido, ocorre uma desvalorização de suas mães e dos valores da cultura feminina, observando-a como negativa, manipuladora ou impotente. Tanto mulheres como homens podem acabar rejeitando as qualidades positivas associadas aos aspectos femininos, tais como: espiritualidade, intuição, criatividade, nutrição e expressões emocionais. A separação do feminino dificulta na sociedade a identificação da protagonista como heroína.
2. Identificação com o masculino e reunião de aliados: nesse estágio, ocorre o encontro com o mentor, alguém que a heroína admira, como o seu pai, um deus ou um sacerdote. Também pode ser uma mentora, mas que possua aspectos masculinos bem definidos. Da identificação com o masculino, em geral, resulta o freio ou a interrupção dos aspectos femininos. Nesse momento também surgem aliados para acompanhar a heroína em sua jornada.
3. Caminho de provações (encontrando ogros e dragões): a heroína percebe que as mulheres foram desencorajadas no processo de se tornarem independentes. É ensinado que o outro, o marido, o amante ou o filho, completarão sua vida e assim poderá realizar o seu destino. Conforme Murdock (2016), nesse estágio, a tarefa da heroína consiste em superar os mitos da dependência e da inferioridade feminina, de fragilidade e do amor romântico.
4. Encontrando a bênção do sucesso: momento em que experimenta o sucesso após transpor barreiras. A heroína escala na vida acadêmica ou corporativa, alcançando prestígio, estabilidade financeira e independência. Pode encontrar um parceiro romântico que considera ideal.
5. Despertar para sentimentos de aridez espiritual (morte): apesar de ter alcançado os seus objetivos, a heroína pode experimentar uma aridez espiritual. Tem medo de olhar para as profundezas de si mesma, segundo Murdock (2016), e acaba se apegando a comportamentos passados e a um estilo de vida familiar, como nos relacionamentos antigos.
6. Iniciação e descida para a deusa: de acordo com Murdock (2016), é nesse ponto que a heroína se depara com uma descida ou noite escura da alma que traz tristeza, dor e falta de direção. É uma espécie de desmembramento que requer procurar pelas partes perdidas de si mesma. A queda ou a desestruturação pode acontecer por vários motivos, tais como a saída de casa, a separação dos pais, a morte de um filho ou cônjuge, o aparecimento de uma doença grave, o envelhecimento, o divórcio ou o surgimento de um vício.
7. Necessidade de se reconectar com o feminino: a heroína precisa recuperar as partes do feminino que foram separadas, ignoradas, desvalorizadas ou reprimidas no primeiro estágio. Para se reconectar com o feminino, seu senso de identidade e subjetividade se torna mais profundo e criativo, voltando-se para atividades que permitem conexões entre mente, espírito e corpo.
8. Curando a separação mãe-filha: é curada a ruptura que decorre da separação do feminino no início da jornada. A heroína emerge da escuridão reconectando-se com suas raízes mais profundas. Ela recupera traços femininos que antes deixara de lado, que considerava fracos ou não valorizava.
9. Curando o masculino ferido: ocorre a cura do "masculino interno" da heroína com a pacificação do conflito gerado pelo mundo patriarcal, segundo Murdock. A heroína busca a harmonia e o equilíbrio.
10. Integração entre masculino e feminino: Murdock observa que a heroína deve se tornar uma guerreira espiritual aprendendo a arte do equilíbrio e que seja paciente para a integração sutil e lenta dos aspectos femininos e masculinos de sua natureza. O estágio final representa o hieros gamos, o casamento sagrado do feminino e do masculino.
As diferenças entre as duas jornadas
É importante ressaltar que os modelos de Campbell e Murdock se baseiam em estruturas narrativas que há séculos já existiam, e que a Filosofia e a Psicanálise até hoje se preocupam em mapear.
Sobre as diferenças entre as duas jornadas, o diretor de audiovisual, roteirista e sócio da Mesinha Amarela, produtora de conteúdo para crianças, Alex Ribondi, comenta que "a grande diferença entre as duas abordagens é em relação ao foco de transformação. Na jornada do herói o foco é nos conflitos externos ao protagonista. Embora haja uma transformação interna que permite que, ao final da jornada, a protagonista seja "senhor de dois mundos", os pontos principais são de conflitos. Na "Jornada da Heroína", a impressão que tenho é que Murdock percebe não apenas que Campbell não vê a mulher, o feminino como possibilidade de protagonismo, mas entende que essa jornada "interna" precisa de uma leitura própria e tão forte quanto. Quando Campbell coloca que a mulher está nos mitos como "objetivo" da jornada e, por isso, ela não precisa passar por essa transformação, deixa claro, no meu ponto de vista, que há uma falha, um vácuo criado nas possibilidades narrativas. Seja pela ignorância, seja por questões circunstanciais, a não inclusão do feminino nessa análise das estruturas de histórias é mais um dos inúmeros desequilíbrios na questão do gênero nas histórias ocidentais que se perpetuou ou se perpetua até os dias de hoje. Desde os contos de fada, em que a mulher é o mal, a bruxa, ou a bondade pura que precisa ser salva, até histórias consagradas em que o papel feminino é o da fragilidade ou da "ausência de ação" como em Indiana Jones".
Na ótica da também roteirista Ana Saki, que trabalhou no roteiro de séries como Necrópolis" (Netflix) e "O Complexo" (CineBrasilTV), essa diferenciação entre feminino e masculino é muito mais complexa. "Murdock fala da jornada da mulher como um contraponto à do homem, e como está essencialmente implementada na binariedade, uma jornada se contrapõe à outra, necessariamente. O que nos divide? Nós, mulheres, e os homens? Então, penso numa referência de filme de horror, "Ginger Snaps - A possuída", onde a protagonista é atacada por um lobisomem e começa a se transformar em um também. Porém isso acontece com a soma dos elementos "tornando-se mulher" (através da puberdade) e "tornando-se um monstro" (elemento do horror ou fantasia). Ou então "Carrie", que é uma história que poderia se passar apenas com uma menina, pois é baseada na experiência universal de ser uma menina na escola", analisa.
Ana Saki complementa dizendo que "a jornada do herói não é estritamente masculina, visto que o masculino retratado nela tornou-se rapidamente universal. No roteiro, a gente trata bastante a universal masculina como compreendendo a jornada de uma personagem mulher. O problema começa quando entra em jogo a palavra "feminino", porque remete à feminilidade, afastando os dois gêneros. A Murdock é psicóloga e trouxe as experiências das pacientes dela para basear o seu trabalho. Acontece que essas experiências das entrevistadas eram somente vistas e contadas por esse aspecto da feminilidade. Tem coisas que essas mulheres compartilharam que podem apenas ser vividas por pessoas do sexo feminino (e somente se apresentam nesse trabalho em pessoas cis binárias). Então, ela vai contar sobre a jornada da heroína sob o ponto de vista de uma gestante, uma esposa, uma filha (em contraponto às expectativas da sociedade patriarcal), etc".
Desde o surgimento da primeira heroína nas histórias em quadrinhos, "Sheena, a Rainha das Selvas" (1937), uma mulher objetificada e muito semelhante ao "Tarzan", passando pela "Mulher Maravilha" (1941), "Tempestade" (1975) até chegarmos às heroínas mais contemporâneas, como "Jessica Jones" ou Katniss Everdeen, de "Jogos Vorazes", notamos mudanças significativas no protagonismo e representatividade das mulheres em histórias fantásticas.
Contudo, pelo fato de a jornada da heroína conter um recorte muito específico de um determinado grupo de mulheres, a roteirista Ana Saki pondera que talvez o modelo de Murdock não dê conta de representar as façanhas heróicas de muitas das personagens contemporâneas. "Isso exclui um pouco as jornadas como a da Katniss a meu ver, pois ela poderia ter sua história contada como se fosse um personagem do gênero masculino. A Katniss, acredito, foi criada sob a universal masculina, e por mais que possamos espremer ela dentro do que a Murdock fala, eu discordo da Katniss viver uma "jornada da heroína", avalia Ana.
Para Alex Ribondi, "entender essas personagens pela estrutura da jornada da heroína é apenas uma das possibilidades". Ele fala também sobre possíveis abordagens na criação de heroínas para o público do nosso tempo. "Hoje, em especial nos exemplos citados que são classificados como histórias de gênero, é importante entender que fazem parte de um olhar moderno e interessante de possibilidades de construção de personagens interessantes, sejam homens ou mulheres. Isso, é claro, passa por criar personagens únicos, com dramas únicos que possam gerar empatia no público. Quando eu tenho uma guerreira que tem os cabelos rebeldes que a atrapalham a lançar uma flecha ("Brave") ou quando tenho uma menina que vira um panda vermelho ("Red") superforte, mas que tem problemas para se comunicar com a mãe e ir contra suas expectativas, cria-se um universo interessante em que o público consegue se ver na história. Eu posso nunca ter superpoderes ou lutar contra alienígenas, ou, inclusive no meu caso, nunca ser uma mulher, mas sei o que é decepcionar alguém, sei o que é ter vergonha, medo entre outras possibilidades de emoções que fazem as heroínas reais e cativantes. Eu consigo compreender e ter empatia quando me conecto com essas emoções e características das personagens".
No mundo contemporâneo, muito mais diverso que as épocas em que foram escritos "O herói de mil faces" e "Jornada da Heroína", as possibilidades de protagonismo podem e devem ser as mais variadas possíveis, abrindo espaço, por exemplo, para personagens que não se enquadram na lógica binária homem/mulher. O mais importante, segundo Alex Ribondi, é criar narrativas interessantes com personagens e jornadas reais, de forma que o público possa se identificar com a história.
"Acredito que em qualquer criação narrativa, perceber as inúmeras possibilidades de protagonismo é essencial. Não se trata de criar uma personagem masculina ou feminina. Precisamos criar personagens reais com qualidades e defeitos interessantes e que possam passar por transformações inspiradoras. A conexão com o público se dá quando há a identificação, independentemente de qual estrutura foi escolhida. É importante entender que o uso de uma estrutura não faz a história e, sim, a criação de boas personagens e seus conflitos. Isso pode ser comprovado pela enorme quantidade de filmes e histórias "iguais" que surgem todos os anos. Para se alcançar relevância no trabalho da escrita, é preciso entender que as estruturas são guias básicos para qualquer área, mas que é preciso ir muito além. Assim como só é possível criar uma boa receita se você compreender os fundamentos básicos de uma cozinha, seus equipamentos e as relações entre eles, só se é capaz de criar uma boa história com os conhecimentos sobre personagens e estruturas narrativas", completa.
Alex Ribondi encerra dizendo que escrever histórias "não é a escolha da jornada do herói ou da heroína. É algo muito mais profundo. Desde Aristóteles, passamos por diversos "marcos" na análise das estruturas de histórias. Campbell com a "O herói de mil faces", Murdock com a "Jornada da Heroína", Vogler com a "Jornada do Escritor", Robert McKee com "Story", Snyder com "Save the Cat", entre outros. O que se faz nessas análises é perceber pontos e estruturas comuns às narrativas e tentar criar entendimentos e explicações para os resultados alcançados por esses elementos. É preciso lembrar sempre que essas análises são posteriores à criação de histórias. As narrativas são parte do `ser` humano, e estudar, entender e conseguir criá-las é o que nos faz prosperar enquanto espécie".