Quem leu o clássico "Grande Sertão: Veredas", de João Guimarães Rosa, certamente, deve lembrar das palavras inusitadas contidas no romance, inventadas pelo próprio autor. Nonada e enxadachim são duas delas. George Orwell fez o mesmo na distopia "1984". Duplipensar e crimeideia são vocábulos da Novilíngua, língua fictícia pensada por Orwell para a trama.
Fora da literatura, também nos deparamos com palavras que não existiam há alguns séculos. Isso acontece porque toda língua é dinâmica e passa por transformações juntamente com a sociedade.
Criar palavras ou ainda atribuir um sentido diferente às já existentes é o que chamamos de neologismo, um recurso bastante interessante na escrita criativa, que pode ser utilizado na construção de personagens, na marcação do narrador ou na caracterização do espaço geográfico da narrativa. Para falar sobre neologismos e seus usos, conversamos com Érica Jorge Carneiro e Neiva Maria Tebaldi Gomes.
Érica Jorge Carneiro é professora e escritora. Doutora e Mestra em Ciências Sociais, bacharel em Letras e Ciências Sociais. Coordenadora do Centro de Línguas e Literatura de Itanhaém. Há 20 anos atua como professora de Língua Portuguesa no Ensino Médio, além de atuar no Ensino Superior com várias disciplinas. É membro do Clube de Escrita para Mulheres e do Coletivo Escreviventes. Poeta do Portal Fazia Poesias.
Neiva Maria Tebaldi Gomes é graduada em Letras, Língua Portuguesa e Respectivas Literaturas, Mestre em Linguística e Letras e Doutora em Letras. Foi professora titular do Centro Universitário Ritter dos Reis, durante 21 anos, atuando nos cursos de graduação e pós-graduação. Desenvolveu pesquisas fundamentadas em Semântica Argumentativa, Teorias Enunciativas e Discursivas. Foi autora do projeto Liberdade pela Escrita, vencedor do concurso nacional Vivaleitura/2006 e vencedor do prêmio Fato Literário 2008. Recebeu, em 2007, o Prêmio Açorianos de Literatura pela organização (conjunta) do livro Aprendizagem de língua e literatura: gêneros & vivências de linguagem. Ministrou cursos de revisão linguística, de produção de narrativa pessoal e de gramática para escritores. Autora do blog SCRIPTURA, no qual discute questões de gramática.
Como podemos definir um neologismo?
Érica: Neologismo é uma palavra que, tecnicamente, não consta em nosso dicionário e, portanto, é criada, inventada. Sabemos, porém, que muitos neologismos derivam de combinações lexicais já existentes, apenas reafirmando ou modificando seus significados.
Neiva: De modo geral, em estudos da linguagem, neologismo é a denominação dada a uma palavra que não existia antes no vocabulário da língua e passa a fazer parte dele temporariamente ou mesmo a incorporar-se ao léxico da língua. E neologia é o termo empregado para denominar o conjunto de processos de renovação lexical de uma língua.
Há dois tipos de neologismos. O primeiro, conhecido como neologismo lexical, consiste na formação de palavras novas a partir de outras já existentes. Exemplo: sextou, verbo derivado de "sexta" (feira), que passou a ser empregado para dizer que chegou a sexta-feira, que é dia de sair com os amigos, de ir a um happy hour, de descansar, entre outros sentidos. O segundo, conhecido como neologismo semântico, consiste na atribuição de novos sentidos a palavras já existentes. Exemplos: bico e corneta. "Muitos desempregados sobrevivem de bicos". "Apesar da corneta, continuou defendendo o time".
Respondendo à pergunta, um neologismo é uma palavra nova na língua, criada a partir de elementos existentes na própria língua (prefixos, sufixos, radicais e palavras) ou a partir de adaptações de palavras de outras línguas. Um neologismo também pode formar-se pela atribuição de um novo sentido a uma palavra já existente (é o caso de corneta e bico, nos exemplos acima).
O processo de formação de novas palavras é da própria natureza das línguas, que evoluem de forma lenta, mas constante. Dentre as novas palavras que vão surgindo, algumas se consolidam e, com o tempo, vão sendo incorporadas ao léxico e registradas em dicionários; outras constituem apenas modismos e vão desaparecendo.
A formação de novas palavras ocorre porque os elementos de formação (prefixos, radicais e sufixos) estão disponíveis na língua, prontos para serem combinados para criar sentidos novos. Há dois processos básicos de combinar elementos já existentes na língua para formar novas palavras: 1) a derivação, que consiste em formar uma nova palavra a partir de uma anterior, com acréscimo de prefixos e/ou sufixos (deslealdade= des+leal+dade), 2) a composição, que consiste em juntar duas ou mais palavras (planalto= plano + alto), ou dois ou mais radicais (cronômetro= khronos + metron) para formar uma nova.
A motivação para a criação de novas palavras pode vir da necessidade de nomear algo ou um fenômeno novo, mas também pode atender a uma função expressiva ou estética/artística, como o fez Guimarães Rosa, na Literatura.
Palavras de língua inglesa que foram aportuguesadas, como "linkar" ou "stalkear", por exemplo, também são consideradas neologismos?
Érica: Neologismo e estrangeirismo são dois processos de formação de palavras. Palavras aportuguesadas não são consideradas neologismos, mas sim estrangeirismos, quando passam a fazer parte do nosso vocabulário devido ao intenso uso.
Neiva: Enquanto o fenômeno denominado neologismo resulta da criação de palavras novas a partir das possibilidades da própria língua ou da adaptação de vocábulos procedentes de outras, o processo denominado estrangeirismo apenas inclui palavras ou expressões de outra língua em nosso vocabulário.
Ou seja, ambas podem ser consideradas neologismos, porque sofreram uma adaptação à morfologia da língua portuguesa. Derivada do termo inglês link, a palavra linkar recebeu primeiramente o sufixo -ar, formador de verbos em português. Em dicionários atuais, o termo já aparece com grafia também aportuguesada: lincar.
Stalkear é um verbo formado a partir do termo inglês stalker, que quer dizer perseguidor; é a denominação daquele que acompanha todos os passos de algum usuário nas redes sociais. Embora a palavra stalkear ainda não apareça com grafia aportuguesada, sofreu adaptação ao receber o sufixo português formador de verbos -ar.
Assim, link e stalker, tomados de empréstimo do inglês, e incorporados ao nosso vocabulário sem sofrer nenhuma adaptação, caracterizam-se como estrangeirismos. Já linkar (ou lincar) e stalkear, por terem sofrido adaptações à morfologia da língua, caracterizam-se como neologismos.
Na literatura brasileira, João Guimarães Rosa era um dos mestres no uso de neologismos. Na escrita ficcional ou na poesia, de que forma um escritor pode se apropriar deste recurso para enriquecer o seu texto?
Érica: O neologismo é um ótimo recurso literário desde que o autor saiba fazer uso dele juntamente ao processo de composição de personagens. É importante lembrar
sempre que a língua ganha sentido em seus falantes, portanto, não adianta o autor ter uma boa construção lexical de neologismo e não combinar com seus personagens. Os neologismos são recursos linguísticos importantes para enriquecer
o texto, propor saídas estilísticas e ajuda a compor social e psicologicamente os personagens.
Neiva: Guimarães Rosa foi, sem dúvida, o escritor brasileiro que mais tirou proveito das possibilidades de criação estética/artística que a língua oferece. Realizou um trabalho de linguagem minucioso, de muita reflexão sobre a língua e, certamente, de muita observação dos usos da língua na oralidade. No neologismo "nonada", que pode ser entendido como coisa que não é importante, pode-se perceber o "não (é) nada" da oralidade. Em "enxadachim", neologismo que designa trabalhador do campo, que luta pela sobrevivência, constata-se a união das palavras "enxada" (trabalho) e "espadachim" (duelo). Só um grande conhecedor da língua conseguiria ser tão produtivo em termos de criação de neologismos.
Tentando responder à pergunta, penso que um poeta ou escritor poderia valer-se da possibilidade de criar palavras para traduzir sutilezas semânticas para as quais não há termos prontos disponíveis na língua ou para provocar estranhamentos no leitor ou, ainda, para produzir determinados efeitos de sentido, como o humor, por exemplo. E para criar os efeitos desejados com a invenção de novas palavras, creio ser necessário conhecimento dos processos de formação de palavras e dos elementos de que a língua dispõe para isso e criatividade para novas combinações. Ao incluir a criação de um neologismo em seu texto, o autor pode explicitar sua intenção com um recurso gráfico, como aspas ou itálico.