A importância de um bom começo
 



Dicas

A importância de um bom começo

entrevista com Luiz Paulo Faccioli


É certo que um desfecho surpreendente pode tornar uma narrativa inesquecível, seja ela curta ou longa. Mas para que o leitor se sinta motivado a ir até o final, um bom começo é imprescindível.

Buscando alguns exemplos em obras clássicas da literatura, temos "Dom Quixote", de Miguel de Cervantes, cuja frase de início logo capta a atenção de quem lê. "Desocupado leitor: sem juramento meu, embora?". Em "Anna Karênina", de Leon Tolstói, a alegação inicial de que "todas as famílias felizes são iguais, as infelizes o são cada uma à sua maneira" é arrebatadora.

É nas primeiras linhas que o leitor conhece o narrador, o espaço onde a trama ocorre e vai entendendo um pouco do ritmo da narrativa. Um bom começo é um convite, que poderá ser aceito ou não, dependendo da forma como a narrativa é introduzida. Diante disso, como estruturar um bom começo?



Para falar sobre o assunto, conversamos com Luiz Paulo Faccioli, que é músico, compositor, juiz Allbreed e Instrutor pela The International Cat Association - TICA. Autor de Elepê (contos, WS Editor, 2000), Estudo das Teclas Pretas (novela, Record, 2004), Cida, a Gata Maravilha (infanto-juvenil, Galera Record, 2008), Trocando em miúdos (contos, Record, 2008) e Primeira Pessoa (contos, Metamorfose, 2019), Luiz Paulo também é crítico literário do jornal Rascunho há 19 anos e professor no Curso de Formação de Escritores da Metamorfose.

Por que as primeiras linhas de uma narrativa, seja ela curta ou longa, são tão importantes?

As primeiras linhas contêm - ou deveriam conter - o tom da narrativa e alguns indicativos do caminho que o autor vai percorrer para desenvolver sua história. Se bem realizadas, essas linhas têm o poder de cativar de imediato o leitor, mas podem também afugentá-lo com igual rapidez: poucos os que se dispõem hoje a avançar numa leitura que não seja interessante desde o começo na esperança de que ela melhore.

Como estruturar um bom começo?

A primeira frase é crucial. É ela que vai dar o tom até, pelo menos, que haja alguma mudança de narrador ou de foco narrativo. O começo tem de ser firme e apontar diretamente para o que se quer narrar. Um bom exemplo é a abertura do romance "Jerusalém" de Gonçalo M. Tavares:

"Ernst Spengler estava sozinho no seu sótão, já com a janela aberta, preparado para se atirar quando, subitamente, o telefone tocou. Uma vez, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze, catorze, Ernst atendeu."

Independentemente do que virá a seguir, o leitor já foi fisgado e quer saber o que vem antes daquele desfecho que o telefonema interrompe. O suspense está criado.

No caso de uma narrativa longa, recomenda fazer o mesmo ao início de cada capítulo?

Podemos pensar cada capítulo de uma narrativa longa como uma peça autônoma, ainda que ele se interligue com os demais para formar uma unidade. Mesmo que não se trabalhe dessa forma, cada novo capítulo é uma novidade para o leitor e seu começo, novo desafio para o autor. Portanto, sim, cada capítulo deve ter um começo bem pensado e instigante, como se a obra recomeçasse naquele momento.

Quais obras você citaria como fonte de inspiração e exemplos de bons começos?

Há muitos exemplos de grandes começos de livros. Um dos mais fascinantes é o início de "A Metamorfose" de Kafka:

"Quando certa manhã Gregor Sansa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso."

Numa única frase, que anuncia todo o conflito da novela, Kafka entrega a chave para a entrada no universo fantástico: a metamorfose de Gregor Sansa numa barata. O leitor aceita de pronto o absurdo da ideia e dali para frente tudo segue uma lógica cristalina. Começo de mestre.

Outro início magistral é o de "O pintor de retratos", de Luiz Antonio de Assis Brasil:

"Embora os desacertos futuros, Sandro Lanari nasceu pintor."

Começar o romance com uma conjunção adversativa para introduzir uma óbvia intrusão do narrador não é coisa que se vê a todo momento.

 

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