Coração forte
 



Contos

Coração forte

Ana Carolina Rodriguez


Quando ele chegou, sabia que não podia adiar mais, eu precisava contar.

- Pai, tudo bem? - perguntei, querendo sondar se ele estava de mal-humor ou cansado.

- Oi, filho, estou bem. Foi um dia pesado no trabalho, mas estou feliz com o resultado.

- Que bom, pai. O que você fez hoje?

- Pintei quase uma casa inteira! - Tinha um sorriso nos lábios.

Meu pai trabalhava duro para nos sustentar, desde que minha mãe tinha ido embora. Fazia qualquer serviço que aparecia: pintura, construção, até com madeira sabia mexer. Eu estava prestes a fazer onze anos e me lembrava sempre do que ele dizia: "Posso não ter estudo, mas tenho coração forte".

Naquele fim de tarde era o meu coração que batia acelerado. O que ele diria quando descobrisse? Não tínhamos muito dinheiro, eu frequentava a escola pública, nós dois cozinhávamos, nunca tinha nada diferente, apesar de ele ter comprado uma pizza certa vez, disse que era para comemorar um serviço bom que tinha conseguido.

- O que você tem, menino? Está esquisito - falou, depois que saiu do banho.

- É que preciso contar uma coisa.

- Não vai me dizer que trouxe amigo para jantar. Só tem sobra de ontem.

- Vem - chamei, abrindo a porta do quintal.

Levei-o até o pequeno galpão de madeira atrás da casa, onde ele guardava ferramentas e tralhas. Abri o cadeado bem devagar:

- Desculpa pai, não fiz por mal.

Fiquei olhando para o seu rosto curtido de sol enquanto a porta se abria, rangendo. Seus olhos mudaram de repente, a expectativa deu lugar para uma enorme ternura quando ele se abaixou para acariciar um cachorrinho magro e sarnento, assustado ao se deparar com aquele homem.

- Ele tava aqui na frente de casa, sozinho. Coloquei no galpão, dei água - falei.

- E comida, você deu?

- Só uns biscoitos velhos.

- Pois vamos dar as sobras de ontem. Depois fazemos alguma coisa pra nós. Ele precisa comer agora, tá pele e osso.

- Pai, você me desculpa?

- Você tem coração fraco? - falou, acariciando minha cabeça. - Mas sabia que isso também é sinal de coração forte? - Riu com a ideia paradoxal que havia tido.

Foi até a cozinha buscar a comida, trouxe num pratinho de plástico, o cachorro comeu, afoito. Meu pai olhou para mim com ternura:

- Tenho orgulho de você, menino, salvou uma vida. Vai se chamar Pirata, por causa dessa manchinha preta no olho.

Nunca esqueço desse dia, mesmo tantos anos depois. Pirata morou conosco por muito tempo. Meu pai e ele morreram, idosos, com poucos meses de diferença, ambos do coração. Pirata foi primeiro. Gosto de pensar que o coração do meu pai não aguentou de saudades, apesar de toda a fortaleza.


Ana Carolina Vieira Rodriguez é paulistana, mas mora em Santa Catarina há vários anos. Formada em Letras pela PUC-SP, fez mestrado em Língua Inglesa e Literaturas de Língua Inglesa na Universidade Federal de Santa Catarina. Tem uma filha de 15 anos e atualmente é professora de Inglês e Português no Instituto Federal Catarinense.

 

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