Um livre comércio
 



Contos

Um livre comércio

Jacira Fagundes


Um bom tempo deveria ter sido... Tão distante do nosso. Mas vale lembrar.

Havia naquele tempo, uma localidade habitada por gente muito simples. Era um povo que vivia do plantio e recolhia-se ao cair da tarde. Mas nem por isso as pessoas ali eram rudes ou desprovidas de inteligência e cultura. Terminada a lida, reuniam-se em volta da mesa grande da varanda a se ocuparem, ora recitando, ora plagiando, ora compondo seus próprios poemas.
Comercializava-se naquela comunidade; e o poema - inventado ou reciclado - era a moeda de circulação. Um bater de palmas na cerca dos fundos significava sinal para o dono da casa, receber uma oferta de compra:
- Vizinho! Preciso de 2 quilos daquele seu feijão. O amarelinho.
- Vou pegar lá dentro. É pra já.
- Tenho aqui uma poesia de cordel. Serve-
- Que serve nada, homem. O amarelinho é raridade; está por um poema de Quintana. E dos grandes!

E era assunto comum na entrada do único açougue da cidade.
- Compadre! Vim buscar o terneiro que encomendei pro batizado do Quinzinho.
- Quatro quilos justos! Dá um Manuel Bandeira mais um Vinícius.
- Que pena! Deixei o último Vinícius com meu filho. Mas tenho aqui uma pérola - o Navio Negreiro de Castro Alves sem uma falha. Completinho.
- Vá lá. O Navio Negreiro e levas de contrapeso esta bela fatia de torresmo.

Havia gente de toda espécie naquelas cercanias. Os mais preguiçosos produziam pouco, tanto na lavoura quanto nos poemas. Com pequeno poder de compra, recitavam antigos versos sabidos e repetidos por todos, ou pequenas trovas, o que lhes rendia no máximo taça, pão e manteiga ou dois martelinhos ali mesmo no balcão da bodega.
Os sovinas só comiam o que era produção própria e fabricavam poemas em quantidade, descuidados da qualidade. No campo, os recitavam baixinho. Mais tarde, em casa, iam lembrando aos pedaços e os escreviam com avidez e as folhas iam para o estoque numa espécie de cofre que mantinham no celeiro longe da vista dos vizinhos.
Mas a maioria - velhos, jovens e até crianças - desenvolvia uma boa produção a fim de garantir a equiparação de renda e não comprometer o comércio com inflação.

Era assim que viviam aqueles homens e mulheres, usufruindo de um livre comércio em que todos, indistintamente, garantiam mesa mais ou menos farta e um certo conforto. Eram bem humorados, respeitosos e crentes na providência divina. Um bom tempo ..., costumavam repetir os mais velhos para os novos que iam chegando. Ninguém há de deixar morrer a tradição..., insistiam. Pois que se orgulhavam das suas histórias - tributo a permanecer na lembrança de todo o povo daquelas redondezas. E passado pelas avós de geração a geração.

Mas existia uma história em especial, segredada somente para os pequenos descendentes de uma das famílias do ramo dos sovinas. Era a história de um tetravô - um jovem esperto e decidido. Certo dia ele se encheu de coragem, tomou o trem e foi visitar uma cidade muito rica e distante. Voltou outro homem. Na bagagem de mão trazia um envelope contendo pequenos retângulos de papel, impressos de um lado e de outro com a imagem de um tipo barbudo e imponente. À tiracolo, carregava uma robusta máquina copiadora. E dentro do peito retumbava um desejo enorme de enriquecer.
Não conseguiu controlar.

 

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