Do efêmero
 



Contos

Do efêmero

Cláudia Carvalho


Um tapete de grama cuidadosamente aparado, rodeado por indecifráveis e sinuosos arabescos, emprestava àquela mangueira um encanto compensador, já que há muito não se via dela um fruto. Do tronco grosso e baixo despendiam galhos generosos e robustos, que suportavam incontáveis vasos de samambaia, dinheiro-em-penca e aspargo-alfinete. A poucos metros, coqueiros esguios e empenados, angicos brancos, goiabeiras, jaqueiras, pinheiros e cajueiros sitiavam todo o terreno, em cujo centro uma elegante casa de estilo vitoriano se destacava, com um estonteante jardim, capaz de fazer cair o queixo até dos mais insensíveis e distraídos. Não sem razão, o recanto foi cercado. Reincidentes lamentavam a má sorte.

Aquele era o lugar favorito de Hanna, gostava de passar tardes sonolentas, ruminando antigos enredos, cujos desenlaces, de uma contundência pontiaguda, feriam de morte os seus já fragilizados recessos. Mas não era apenas isso, aquele recanto trazia-lhe lembranças de Sara, sua amiga desde a infância. Agora, pensava, as coisas mudaram. Há dois meses não se viam, apenas se comunicavam por celular.

Comeu o último biscoito, já meio bolorento, levantou-se, sacudiu o farelo do vestido e foi caminhando em direção à casa, ciente do que lhe aguardava, afinal, ignorar os berros de Dona Marta, criatura notavelmente histriônica, não era uma boa pedida.

- Até que enfim você voltou à Terra! Você mudou de ideia quanto a ir ao casamento da sua melhor amiga ou será que foi acometida por uma amnésia repentina? Você tem dois minutos para se arrumar.

Hanna ficou parada por exatos dois minutos, num duelo silencioso com o tempo. Tal foi a lentidão com a qual se arrumou, que precisou chamar um táxi. A cerimônia terminou poucos minutos depois da sua chegada. Olhou ao redor. Assim como a putrefação atrai os urubus, a leviandade das aparências atrai meus familiares, pensou. Bastava um evento assim e dona Marta substituía o seu habitual desdém por uma burlesca simpatia pela enteada. Encerrada a cerimônia, desejou ficar só, mas foi puxada por Sara até o salão de festa, no pátio da Igreja.

- Obrigada por estar aqui. A sua presença é muito importante, amiga. Vem me ajudar a trocar de roupa, sim? ? Sara puxou-a. Não teve escolha.

Enquanto se dirigiam ao quarto improvisado, Sara falava pelos cotovelos, cantarolava, dançava. Num determinado momento, quase perdeu o equilíbrio ao pisar na barra do vestido, e se não fosse Hanna teria despencado da escada. Precisava de uma bebida, falou. Ignorando o apelo, Hanna adiantou-se, abriu a porta do quarto, fez um gesto para que ela entrasse. Depois, pediu licença e foi ao banheiro. Tapou os ouvidos enquanto Sara, encostada à porta, lhe contava sobre as intimidades com o noivo. Ao sair, deu de encontro com a amiga, olhou-a, apontou para o vestido em cima da cama, Sara foi se vestir. Pediu ajuda com o zíper.

- Que cara é essa, Hanna? Credo!

Não teve tempo de responder, logo Sara se juntou aos outros convidados. Hanna, de longe, a observava. Tudo ao redor acentuava a atmosfera aristocrática do momento. Salão, noivos, padrinhos, tudo estava impecável, mas Hanna abominava todo e qualquer tipo de ritual ou celebração. Aos tímidos convém o recolhimento, a discrição, o silêncio. Bebericou uma taça de vinho. A música alta a incomodava bastante. Não, não queria dançar. Não, já havia bebido o suficiente. Sim, estava com dor de cabeça. Levantou-se. Sua madrasta a repreendeu algumas vezes com um sorriso escancarado. Por fim, o noivo pediu silêncio, fez um discurso de agradecimento, seguido da noiva e dos demais convidados.

Por último, Sara deu a palavra à Hanna. Insistiu por mais duas vezes, ignorando a recusa dela. O noivo a socorreu, dispensando-lhe a fala, mas Sara tomou o microfone das mãos dele e o entregou à amiga, cuja expressão desafiava a sua habitual aptidão para escrutinar os recessos e excessos das pessoas. Subitamente, Sara teve um mau pressentimento.

Foi então que Hanna subiu os degraus, posicionou-se no lugar mais alto, movimentando-se como quem obedece a um rigoroso script, os olhos percorreram todo o pátio, depois, fixou-os em Sara, mas não conseguia articular palavra alguma. Não estamos te ouvindo, brincava Sara. Hanna enxugava a mão na barra da saia. Sara resolveu ir até onde ela estava. Sim, não precisava falar, deu-lhe um abraço e inclinou-se para beijá-la no rosto. Foi aí que Hanna perdeu o controle, soltou o microfone, agarrou-a fortemente e beijou-a na boca.


Cláudia Carvalho é paraibana, casada, mãe e avó de um lindo neto. Apaixonada por música, canto, literatura e escrita. Instagram @claudia_paula9367. Participa do Curso Online de Formação de Escritores.

 

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