Pai, um dia você me aconselhou que eu nunca tivesse filhos. Filhos são uma aposta num futuro que decerto não haverá, você dizia.
Mas o amanhã tem uma força que não reconhece a desesperança. Feito rio, enchente que esbarra, alargando margens, mudando o curso das sedes, afogando caminhos traçados, levando de roldão as certezas, a esperança insiste, ainda que o final esteja próximo, como o iminente respirar.
Então tive meu filho com o homem de olhos de verão, azuis de tontear os pássaros, que do anilado céu se embebiam a despencar, bêbados de amplidão. Era um homem de se rememorar. De nunca, jamais, se esquecer. E eu sabia que não merecia esse homem, que eu não lhe estava à altura, não finjo que não.
Eu era nova demais, que é que eu sabia sobre a vida? Nada, nada mesmo. Engraçado é que hoje, essa mulher velha que sou, reconhece muito bem que continua a não saber, apenas não recua mais da luta, como dantes. Compreender muito pouco me fez mais justa, mais paciente, me trouxe um tipo de força, vá lá entender. O desconhecer, às vezes, é uma espécie de armadura, que faz avançar para o campo de batalha, ainda que às cegas.
Mas quem é que nesse mundo conhece quanto ao viver, afinal? E o que é que aquele homem sabia? Nada, também. Acho que muita gente se engana, só pensa saber, qual ave pequenina que enfrenta gavião, a lhe rondar o ninho. É o desespero, o avizinhar do bote derradeiro, que transfigura o medo em coragem e lhe ensina o proceder.
A ponte sobre o rio da existência é estreita e está em frangalhos, as cordas que a sustentam vão por um fio. Alguns se apavoram e tonteiam ao olhar para baixo, a contemplar o abismo, o rio selvagem a correr lá embaixo, as corredeiras dos dias a tragar o desavisado, a conduzir para inescapáveis cachoeiras e o mar profundo, ao final.
Outros atravessam essa ponte a correr, sem olhar a lado nenhum, passam pelos anos como se em fuga, despencam em mergulho cego às correntezas, em meio a destroços de tempestades, e quando chegam à margem última, se espantam com os momentos que morreram, infecundos, com o tempo que se esvaiu.
Cruzei a ponte dos dias muito devagar. Olhando para as águas abaixo a correrem, apreciando cheias e vazantes, enxurradas, águas calmas, piracemas. Avezinha a ciscar, para frente e atrás, a cismar, atentando aos que passavam por mim, observando as lutas, os que lançavam irmãos às torrentes mortais, para que lhe cedessem o lugar, os que atropelavam os indefesos, que os desequilibravam e atiravam no abismo, apenas para alcançarem, mais ligeiros, a margem definitiva.
Alcancei muito pouco em meu caminho, meu pai, mas quando meu último verão me tomou pelas mãos, eu pude olhar para os olhos de meu filho, essa vastidão com sol a pino, e me aquecer no calor dos seus meio-dias, até que o derradeiro outono, piedoso, me convidasse a alçar voo com retardatárias aves migratórias, em rota direta para horizontes amenos e azuis.
Sandra Aparecida Romeiro nasceu em São Paulo, morou no Pantanal do Mato Grosso do Sul e na Amazônia. Atualmente reside em Santa Catarina. É médica veterinária, mas desde cedo foi uma leitora voraz, e sempre manteve o hábito da escrita. Apenas recentemente, no entanto, tem se dedicado com mais constância à poesia e aos contos. Participou de algumas coletâneas e está organizando seu primeiro livro.Participa do
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