Onde o chão de cal e terra batida corrói os pés, o sol, indiferente, derrete o lombo dos filhos de Maria. A mãe se despede de frente a porta, solfeja um salmo para o caçula, ele leva uma carga pesada nas costas que exala cheiro de fome.
Caminha entre os pedregulhos, quase se desequilibra ao pisar sem querer em carrapicho no meio do caminho. Ele puxa o espinho, suga o sangue que escorre do peito do pé, e continua apesar das peripécias pelo trajeto.
Vai alcançar os seus irmãos na obra, sincroniza os passos com o ritmo das picaretas. Ao chegar ao grande barracão onde todos os trabalhadores daquela ponte desaguam, desafia a si mesmo a não pisar em nenhuma linha dos ladrilhos cobertos de poeira.
Muita gente, quanta gente, pensou enquanto procurava, sem conseguir, os seus irmãos e um grito ardido chamou.
- Menino, venha cá, chegue aqui, vá! De onde veio? Para onde vai? Que isso no seu lombo?
- Fraldinha, farofa e feijão feito agorinha - respondeu o garoto
- O que é isso! Me vê uma parte, criança, que eu tô quase falecendo - enquanto puxa o braço do menino para si, a criança desliza o braço fino feito felino e arranca da sua mão, fita a esclera amarelada do pedinte e diz.
- Não!
Desembesta a correr, como se uma perna fosse mais rápida que a outra, tropeça na sua própria mente embaralhada com o barulho e gritos.
- Truco!
- Seis!
Olha para a direita. Esquerda, esticou o pescoço
- Pague o que deve se não conto pra sua esposa!
- Eu não te devo nada!
Carrega o almoço na cabeça, pés na cadeira, subiu na mesa para ver por cima da multidão.
- Desce daí! - tapa na nuca. Dor ardida desponta aquela vontade, mas não. Segura, uma rebelde escapa e escorre pelo rosto e cai no pó. Por enquanto nenhum familiar à vista.
Distancia-se, dentro dos dutos de um metro e meio de concreto busca um refúgio do sol inclemente, força os olhos e vê, lá no horizonte, o formigueiro de gente e uma grande coluna de concreto se levantando.
Senta-se sobre seus calcanhares, joga peso na ponta dos pés para poupar a coluna e começa a riscar na areia, mas em um instante sente uma presença no seu encalço. Foi breve, mas o frio atravessa a espinha e faz o garoto saltar para frente, a criatura solta gemidos enquanto devora a comida no chão, tenta espantar, acerta uma joelhada no focinho, o vira-lata continua ali, pega um toco de madeira segura com as duas mãos encaixa um golpe nas costelas do animal. O ganido final chama a atenção de quatro homens que estão sentados na sombra projetada por um grande paredão.
Quando finalmente os encontra não sente medo, mas olha para a refeição preparada a tanto custo no chão, prevê o castigo, fecha os olhos, dobra os ombros, coloca os braços à frente do rosto e espera.
André Ricardo Menezes da Silva tem 21 anos, é estudante de direito na Faculdade de Direito Laudo de Camargo UNAERP. Entusiasta da escrita criativa com interesse especial em contos. Participa do
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