Curando a ressaca com a água do próprio pranto
 



Contos

Curando a ressaca com a água do próprio pranto

Afonso E. G. Markmann


Você lembra de como fizemos piadas sobre nossa formatura cair no mesmo dia do fim do mundo? Os maias tinham previsto que nossa despedida da escola seria motivo de uma festa tão grande que culminaria no fim dos tempos.

Foi no dia vinte e um de dezembro de 2012. Fora a história do fim do mundo, é o dia mais longo do ano e também aquele que marca o início do verão. Lembra que eu te disse como aquilo era poético? Terminarmos a escola no momento em que o verão começa, a sensação de liberdade que aquela data marcava até então, dando início às férias... o primeiro dia do resto das nossas vidas, foi o que você sussurrou. Eu assenti: era uma liberdade diferente, quase assustadora de tão grande. Queria ter dito isso, mas começaram a nos chamar para o palco. Lembra do seu vestido vermelho? Eu usava uma gravata que combinava com ele. Olhei para nossos colegas caminhando até o palco e todos pareciam tão... adultos, como se não estivéssemos pedindo permissão para ir ao banheiro apenas um mês antes.

Algumas horas depois, no meio da festa, você se aproximou e começou a dizer que aquilo era loucura. O mundo não tinha acabado e agora teríamos que enfrentar as consequências de nossas escolhas e nos tornarmos pessoas responsáveis. O brilho do primeiro dia de verão, você disse, logo findaria, assim como os melhores anos de nossas vidas se esvaíam naquele exato momento. Eu te acusei de ter bebido demais, afinal já era noite e o sol parara de brilhar há horas. Você riu e me bateu no ombro com seus sapatos, que já não estavam calçados há um bom tempo, e se afastou dançando.

A festa seguiu madrugada adentro, a bebida e o som alto servindo de combustível para a catarse que aquela data representava. Bem, talvez não a data, mas a celebração. Não sabíamos que as amarras que nos prendiam à escola não tardariam a ser trocadas por outras bem mais apertadas, e que seríamos pagos para as atarmos aos pulsos. Minto: a maioria de nós não sabia daquilo. Você parecia ter consciência plena, tanto que tentou me avisar. Poderia a ebriedade ter um poder tão esclarecedor em sua mente e tão inibidor nas demais? Hoje, uma década depois, eu penso que sim.

O fato é que ninguém viu você sair. O único consenso foi o de que, após a meia-noite, você tinha sumido. Ninguém manteve o foco no seu paradeiro. Era, afinal, uma festa. Não pensamos em desaparecimento ou coisa assim, apenas em um after ou algum tipo de escapada romântica. A noite era jovem e era o primeiro dia do resto de nossas vidas. E então ouvimos as sirenes.

Ainda sob efeito do álcool, fomos para fora rindo. Tenho a vaga lembrança de alguém dizendo algo sobre os bombeiros estarem vindo controlar o apocalipse que havíamos iniciado. O uivo alucinado da sirene se dirigiu rua abaixo, perto o suficiente para vermos as luzes azuis e vermelhas girando. É claro que um grupo de adolescentes naquele estado iria querer saber do que se tratava, então uma dúzia de nós cambaleou até o local.

À frente da ambulância estacionada, reconhecemos de imediato o sedan do diretor. Motivo de muitas piadas pelas costas dele, o carro agora estava com a frente obliterada. A lâmpada do poste que o havia parado tinha desligado, deixando a cena do acidente numa penumbra soturna. Os cochichos começaram quando o choque nos deixou sóbrios. Todos tinham visto o diretor na festa após a solenidade, e alguém disse que ele tinha saído às pressas em algum momento. Foi só falar no diabo que ele logo deu as caras, saltando de uma viatura da polícia e bradando sobre seu carro roubado. Enquanto os paramédicos, policiais e alguns alunos tentavam segurá-lo, aproveitei a deixa e me aproximei do sedan pelo lado do motorista.

E lá estava você. O vermelho do vestido tornava difícil ver a real quantidade de sangue derramado, mas a respiração já tinha cessado. Em seu pulso, o relógio quebrado estava parado com ambos ponteiros sobre o doze. Até hoje, ninguém sabe se você tentava fugir para longe de seu futuro com o carro ou com a colisão.

Você estava certa: foi o primeiro dia do resto de nossas vidas. Nunca consegui esquecer a dor daquela primeira noite de verão.


Afonso E. G. Markmann superou seus medos de infância através dos livros de terror. Com um pouco mais de coragem, escreveu contos inspirados em lendas urbanas até lançar seu primeiro romance, Dupla Exposição Negativa. Participa do Curso Online de Formação de Escritores.

 

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