Chuva de verão
 



Contos

Chuva de verão

Cíntia Engel


Passa pouco de 9h e Ana sente o espaço entre seios e barriga umedecer. Lembra que ainda não comprou o ventilador. Por meia hora, convence-se de que o calor ainda não é tanto, que a compra pode esperar até a terceira quarta-feira do mês, quando sua irmã lhe entrega mantimentos. Ela muito bem poderia trazer junto o ventilador, vendem isso hoje em dia nos supermercados. Senta, trabalha, mas o tecido da cadeira começa a ferver sua bunda. Precisa sair para comprar o ventilador.

Antes, varrer a casa, afinal um vento correndo de lá pra cá iria levantar poeira. Já havia varrido o chão na noite anterior, mas tinha algo com a limpeza. Talvez buscasse compensar na higiene o buraco no meio da parede alaranjada da sala. Escolheu uma parede colorida, vibrante como gostaria de ser. Encomendou as tintas e pintou. Decidiu, por si, usar a furadeira emprestada da irmã para instalar a televisão. Abriu buracos robustos demais e, além de tudo, tortos. Era necessário chamar alguém para dar jeito. Pesquisar, ligar, conversar, abrir a porta, receber. Essa pessoa veria os quadros empacotados no canto, a caixa de papelão guardando os sapatos. Caso olhasse feio, diria que se mudou faz pouco. Era esse o plano, um dia o colocaria em prática. Com o exercício da varrição, sua testa molha inteira, junto das dobras de sua barriga. Precisa sair para comprar o ventilador.

Antes, o banho, não sairia suja, não era de seu feitio. Ignora o banho já tomado no amanhecer, despe-se e se deleita na água fria. Fresca, sente que deve esperar um pouco mais, tantas coisas a fazer na casa. Decide organizar seus livros por ordem de tamanhos e cores. Próximo dia útil da semana, iniciaria o semestre de férias com seus alunos, era urgente arrumar a estante para servir de adereço ao seu cenário professoral. O cabelo preto com ralos fios brancos, ainda molhado do banho, sua no pescoço. Não tem jeito, precisa sair para comprar o ventilador.

Antes, vestir-se com a roupa certa. Pega algo casual, o seu short preferido, o que não lhe aperta. Um tanto velho. Seria bom se tivesse comprado uma blusa solta, fresca, como a irmã a havia aconselhado. Ali dispostas, apenas as camisas de aparecer na tela e as regatas de casa. Seria estranho pegar uma camisa formal e juntar com um short velho. Pega uma das regatas. A única sem furos. No espelho, seus braços curvilíneos e molengos a chateiam. Não fossem as micro assaduras de secar suor ardendo debaixo dos olhos, teria esperado um pouco mais, mas precisa sair para comprar o ventilador.

Pega a bolsa, as chaves e caminha até a porta na ponta dos pés. Chave na fechadura, seu corpo imobiliza. Encara a possibilidade de encontrar com o pessoal da banca de revistas. Certamente estariam lá. Lembra de uma vendedora, particularmente simpática, que costumava atacá-la com efusivos bons dias insistindo que entrasse. Dá um passo para trás, sente nos calcanhares secos o sol que já invade boa parte da sala e que só ganharia espaço nas próximas horas. Volta o passo adiante. Precisa sair para comprar o ventilador.

Gira a chave uma primeira volta. Um leve tremor lhe toma. Aperta sua bolsa. Não era indicado andar com bolsa, hoje tudo era perigoso, era muito possível que a roubassem, viu na televisão que os assaltos aumentaram 26% nesse último trimestre e mulheres de meia-idade eram as principais vítimas e ela era uma mulher que não estava exatamente na meia-idade, mas quase que sim, era muito provável que fosse alvo também. Poderia tomar um tiro, uma facada, era possível até morrer. No ano passado, a vizinha foi assaltada, não morreu e nem tomou facada, talvez ela não fosse assaltada, afinal, tinha gente na rua. Tinha muita gente na rua. Mesmo assim era preciso sair para comprar.

Gira uma segunda vez a chave, a porta bambeia. Abriria, era só girar a maçaneta. Seus olhos grandes demais para o rosto esbugalham. E se a vizinha estivesse com a porta aberta, fechando-se em casa só pela grade? Ela costumava fazer isso. Se tivesse de cumprimentar a vizinha, era melhor que o assaltante lhe furasse de faca. Ela perguntaria se só estuda ou também trabalha, reclamaria de solidão, dos filhos ingratos, do marido aproveitador, do calor. Meu Deus, ela falaria certamente do calor, por minutos, ela teria assunto para falar do calor por longos minutos, das plantas que murcham com o calor, da roupa que suja rápido demais no calor, da falta de apetite, do esmorecimento, da pressão, da diabetes, tudo pior no calor. O ventilador.

Abre a porta, o suor das axilas escorre nos braços, grudando-os à regata. Suas costas enrijecem. Vê a grade, ela também tinha uma grade depois da porta! Respira fundo. Agarra-se nelas com suas mãos redondas e curtas (como o resto do corpo) e tenta espiar se a porta da vizinha está aberta. O ângulo não a ajuda. Fecha os olhos e concentra toda a sua atenção nos sons. Caso ouvisse a voz melosa da vizinha, a porta certamente estaria aberta. Não escuta nada. Talvez fosse melhor esperar um pouco, a vizinha poderia ter ficado quieta exatamente nesse instante ou ter ido ao banheiro.

Espera.

De repente, respira uma brisa timidamente fresca. A brisa aumenta e mexe seus cabelos. Conhece aquele cheiro. É cheiro de chuva. Abre os olhos, o sol escondeu-se em nuvens escuras que convulsionam com o vento. Um clarão seguido de estrondo faz as primeiras gotas caírem. Rápido, engrossam. Ana larga a grade, fecha e tranca a porta devagar. Senta-se calmamente no chão e respira aliviada: no meio do toró, não pode sair para comprar o ventilador.


Cíntia Engel nasceu no interior do Rio Grande do Sul no final dos anos 1980, virou adulta no Planalto Central, passou pelo Piauí, por ora está em Salvador. É professora, pesquisadora e consultora. Fez doutorado em antropologia social pela UnB. Sempre inventou histórias, agora também escreve algumas. Participa do Curso Online de Formação de Escritores.

 

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