A grande baleia ainda respirava ao ser vista pela manhã, atirada sobre os molhes, metade na água, metade na areia. Como um grande barco encalhado.
Antes dos cientistas, que queriam estudá-la, veio o povo, com sua miscelânea de indivíduos e suas vozes babilônicas, instalar-se ao lado do cadáver em conturbado velório. Vendendo, tirando fotografias, comendo, dormindo?
Alguns soldados (altos, ombros largos, baioneta, capacete, sem sorrisos, olhares no infinito, alheios às perguntas dos curiosos) foram rapidamente mobilizados para proteger a baleia contra os depredadores.
A baleia, constatada morta às três da tarde, porém, não fedia. Já tanto tempo fora d`água. Com um olho semiaberto assistia aos queixos caídos de admiração. O sol fissurava o corpo da baleia com feridas expostas que secretavam um líquido viscoso. Alguém, que por ali morava, trouxe um balde e jogou água sobre o animal inanimado. Por uns momentos, o sol ofuscou os olhos de todos, refletido na pele refrescada do cadáver. Aqui e ali começaram as reuniões para decidir o que fazer. O museu oceanográfico estava interessado. Os cachorros estavam interessados, pressentindo o banquete de ossos. Os jornalistas estavam interessados. Cogitava-se o envio de uma unidade móvel da televisão. Mas a baleia não deteriorava. Todos esperando (interessados) e nada. Como se estivesse embalsamada, envolta em petróleo, era o que alguns (ecologistas) diziam. Na prefeitura, uma reunião a portas fechadas com o secretário do meio ambiente ia já para um turno extraordinário, onde se discutiam máquinas e o impacto político da situação.
O povo (o mais assíduo) se renovava continuamente. Atrapalhando o trabalho dos pescadores, irritando os soldados (quase-de-chumbo) com suas perguntas curiosas, olhando com desdém os instrumentos que os cientistas do museu carregavam para lá e para cá, ensimesmados. As reuniões, porém, continuavam...
Na noite do terceiro dia ventou muito. Tempestade de areia. Ressaca. A baleia com seu olho semiaberto foi abandonada. O vento e a areia eram insuportáveis. A areia entrava por todas as frestas, grudava nos cabelos, era engolida e cuspida, ardia ao bater nas pernas. A tempestade de areia durou até o outro meio-dia.
Onde a baleia estava, surgiu um grande cômoro de areia! Algumas crianças já escorregavam na alta duna formada quando chegou uma grande escavadeira, uns dois ou três caminhões. Do museu, da prefeitura? Os pescadores reclamavam. Não podiam trabalhar. O povaréu retornava para assistir. Não queria trabalhar.
A escavadeira começou enchendo os caminhões, que fediam a óleo queimado e saiam deixando um rastro de areia para o lado oposto ao do mar. As pessoas esfregavam os olhos a cada lufada de vento.
Os homens em suas máquinas cansaram e descansaram. O povo seguia atento. Nada, porém, da baleia. Gastaram um dia e uma noite (à luz dos holofotes da marinha) escavando. Os molhes já apareciam limpos com a água a bater nas suas pedras. O povo ia aos poucos indo embora, desiludido. Os cientistas do museu não sabiam o que dizer, nem o que fazer com seus instrumentos científicos. Os soldados, obedecendo ordens superiores, voltaram para os quartéis. A unidade móvel da televisão não compareceu. Mais do que todos, os cachorros se vingavam, mijando nos postes da beira do cais. As reuniões continuavam...
Desaparecida a baleia, existira a baleia?
O que ainda permanecia era aquele olho semicerrado, incrustado na pele fissurada, na memória de todos. O mar espelhava um céu sem nuvens. Os pescadores remendavam suas redes. As velas, vazias de vento, dos seus barcos, pareciam embalsamadas.
Henrique Northfleet Neto nasceu em 1952 em Porto Alegre. Após os 35 anos emigrou para a Alemanha. Cidadão brasileiro/alemão. Viveu em várias cidades da Alemanha e Bruxelas. Formação: químico. Prof. IQ-UFRGS, Doutorado: Química Macromolecular (Freiburg, Alemanha), Gerente de P&D na Metzeler GmbH (Hoechst, Alemanha), Tradutor técnico: inglês, alemão, francês para português (Brasil-Portugal).
Publicações literárias:
Revista ZH, Jun. 1976 - Página Novos, O compromisso com a palavra, 4 poemas e conto.
Correio do Povo, Letras e Livros, Jun. 1983 - Criação (conto)
Ila (Zeitschrift der Informationsstelle Lateinamerika, no. 178, set. 1994) - Remembering Schubert (oder auch unvollendet ... ) (crônica)
http://www.jornaldepoesia.jor.br/HNorthfleet.html - poemas, comentário do poema: Penúltimo Canto, a dúvida, do poeta Soares Feitosa) 2000
Livro publicado pela Ed. Buqui, 79p., 2019, ISBN 978-85-8338-464-9 - UM + UM
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