Houve um período da minha vida que achava não ter pai. De fato, eu tinha pai, mas nunca o via. Meu pai não havia abandonado a família, nem era desleixado, bem pelo contrário. Ele era o que se costumava chamar de homem de família, um provedor. Um membro da classe trabalhadora, que trabalhava duro diariamente. Saía de casa antes do raiar do sol e caminhava quilômetros até seu trabalho, onde ficava dependurado em cima de uma máquina colossal, sendo banhado de óleo quente e gorduroso, enquanto dava forma a imensas peças dentadas que serviriam de engrenagem a tratores e colheitadeiras tão grandes que vistas de longe, com suas luzes resplandecentes no meio da noite escura, seriam confundidas com um palco do rock in rio. Um homem endurecido pelo cansaço, pela rotina exaustiva do trabalho no chão de fábrica, com suas emoções soterradas por tanta dor e desgaste físico, que não sabia expressá-las. Seu jeito chucro e arredio não permitia que ninguém se aproximasse dele. De modo que, no auge dos meus seis anos, nunca havia sido envolvido pelo abraço de meu pai. Às vezes me pegava pensando como seria a sensação disso.
Umas das poucas paixões que meu pai não tinha medo de manifestar era seu fascínio pelo futebol. Ele era bom de bola e como todo boleiro amador gostava de afirmar que poderia ter sido jogador profissional, mas que não teve sorte. Realmente não sei se ele era tão bom assim, mas naquela época acreditava nele e costumava contar aos meus amigos histórias mirabolantes sobre as habilidades futebolísticas de meu pai. E como forma de me identificar com o pai que não via, adotei o mesmo time de futebol dele: o Internacional de Porto Alegre.
Em um domingo ensolarado, tive uma grata surpresa, meu pai, instigado pela minha mãe, decidira passar o dia comigo. Ele me levaria ao estádio de futebol para assistirmos a uma partida do Internacional. Ganhei até uma camisa nova com as cores e emblema do time. Logo após o almoço fomos pegar o ônibus que nos levaria até o centro da cidade e de lá tomaríamos outra condução até o estádio. Me lembro de passar por baixo da catraca para não pagar o preço da passagem de ônibus, enquanto meu pai desembolsou o valor do seu ticket. Chegamos ao centro em menos de meia de hora e caminhamos rapidamente até o mercado público, de onde sairia o transporte para o Beira-Rio, o estádio do Internacional.
Meu pai dava passos largos e acelerados, determinado a não se atrasar. Eu corria atrás dele, focado para não o perder de vista. Para entrar no ônibus tivemos que nos enfileirar em meio a uma multidão vestida de vermelho e entoando cânticos exaltando o Internacional e menosprezando o seu maior rival, o Grêmio. Usavam palavras rudes e obscenas - graças as quais aprendi meus primeiros palavrões e tive uma suspensão da escola dois dias depois, após os aplicar contra um colega da pré-escola -, alguns portavam instrumentos musicais, como trompetes e tambores. Parecia um bloco de Carnaval e me sentia tão empolgado por toda aquela festa, que nem me incomodei com o aperto dentro do ônibus, os corpos de homens adultos nos espremendo, enquanto pairava no ar uma nuvem de flatulência, cheiro de álcool e de algo que parecia cigarro, mas com um odor mais perfumado.
Após 15 minutos espremido, lutando para conseguir respirar, chegamos ao nosso destino. E pude deslumbrar, pela primeira vez, toda opulência do Beira-Rio. Seu formato oval, pintado de vermelho e branco, pessoas caminhando, todas de vermelho, empunhando bandeiras com o emblema do time de futebol. Subimos uma rampa que nos levava ao portão de acesso. O nosso lugar na arquibancada ficava no anel superior. Lá havia uma certa tensão no ar. Alguns torcedores estavam visivelmente ébrios e gritavam impropérios obscenos e comentários de cunho sexual às mulheres que se aventuravam pelas arquibancadas. O estádio era um lugar ao mesmo tempo deslumbrante e hostil.
Enquanto o jogo não iniciava, me entupia de todo tipo de bobagem que os vendedores ambulantes nos ofereciam: batata frita, pipoca, refrigerante, sorvete, amendoim. Meu pai pagava tudo, com uma cara de desânimo, e primeiro me alertou que eu passaria mal. Depois me disse que se gastasse todo seu dinheiro com comida teríamos que voltar a pé para casa. Tentei calcular quanto tempo levaria para percorrermos o trajeto até nosso bairro a pé, e concluí que levaríamos três dias. Como não queria perder a aula do outro dia, pois teríamos que fazer um projeto artístico, decidi parar de me empanturrar.
O jogo começou e nosso time não estava em um bom dia. Os jogadores erravam passes de menos de cinco metros, davam bicas para cima, miravam a bola contra o gol adversário e acertavam a bandeira de escanteio. Um jogo feio, violento, cheio de carrinhos e faltas brutais. A cada momento que um de nossos jogadores se aproximava do gol adversário, as pessoas se levantavam tensas para observar o lance e quando a bola ia para fora, sentavam-se frustradas. Os poucos desaventurados que não conseguiam sincronizar o ato de sentar com o resto da torcida, eram xingados e enxovalhados, jogavam-lhes copos de cerveja, gelo e inclusive urina, até se sentarem.
Quando já estava quase dormindo, entediado com o jogo moroso, o camisa dez do Internacional disparou em direção ao gol adversário, deu um drible que entortou o lateral do time rival. Toda torcida se levantou, atenta. Avançou novamente, entrando na área, ergueu a cabeça e avistou o colega de time. Cruzou, e o atacante pulou muito alto, acho que foram cinco metros acima do chão. E pairando no ar, as leis da física foram suspensas, enquanto o jogador se ajeitava caindo de costas em direção ao chão. A perna esticada acertou a bola que girando rapidamente se alojou no fundo do gol, sem chances para o goleiro. GOOOL, apareceu no placar. A torcida gritou em uníssono e homens adultos e sérios gritavam e pulavam como crianças, extasiados, esquecendo por um instante todos os tormentos do dia a dia. Pessoas que nunca se viram, abraçavam-se, festejando. Vi meu pai sorrir, algo que nunca presenciara até então. Ele se abaixou e me abraçou. Continuamos abraçados por um tempo. Mesmo após as pessoas a nossa volta se sentarem e começarem a nos xingar de tudo quanto era palavrão. Mesmo após sermos ensopados por uma mistura de cerveja barata e urina. Não importava. Era como se por um instante nada mais existisse, apenas a sensação cálida de um abraço.
JONATTAN RODRIGUEZ CASTELLI é economista, professor e finge ser escritor. Natural de Porto Alegre, atualmente experimenta as idiossincrasias de viver na fronteira do Mato Grosso do Sul com o Paraguai. Costuma sonhar com leões passeando nas praias do continente africano e anseia por uma sociedade mais justa, igualitária e democrática. Participa do
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