Dialogos
O azarão
Guilherme David
- Pois não, senhor - uma senhora lendo o caderno de TV do jornal o atende.
- Desejo apostar no cavalo oito, duzentos reais.
- Vem cá, eu acho que estou te reconhecendo - falou a senhora.
O homem baixa a vista, tentando sem sucesso se esconder por trás dos clássicos óculos escuros de aviador.
- O senhor não tinha essa cabeleira acaju. Aliás, havia mais cabelos aí.
- Por favor, minha senhora. A corrida já vai começar.
- Eu não apostaria no cavalo oito, o jockey teve graves problemas gastrointestinais ontem à noite. A grande promessa é o cavalo três. Um pai de Santo está empenhado em fazê-lo campeão.
- Não me induza, por favor.
- Só estou falando isso pelos velhos tempos.
- Que velhos tempos?
- Eu mordi sua bunda num filme em 1976.
- Me respeite, sua louca.
- Se calhar ainda tem a marca dos meus dentes cravados nela.
O homem ficou pensativo e investigou o crachá da atendente, pensou alto enquanto lia:
- Valdirene Souza.
Ela arrumou o cabelo, aproximou-se da abertura do vidro da cabine com um biquinho e sussurrou:
- Rosemary Bumbum.
- A ajudante de palco do show de calouros? - questionou, trêmulo, não percebendo o começo da corrida.
- A própria.
- Você não era loira.
- Assim a gente nunca envelhece, bonitão - respondeu balançando os cabelos.
Ele abriu um sorriso com dentes amarelados.
- Precisamos conversar, relembrar os velhos tempos. - Ele mal podia se conter. - Vamos marcar um cinema. Tome meu cartão.
- Estou vendo que você ainda sustenta uma aliança no dedo - provocou.
- Só moramos juntos. Eu e a Euzébia, não sei se lembra dela.
- Claro, a Dolores Azevedo da novela das oito.
Enquanto os dois flertavam, o alto-falante começou a narrar uma disputa acirradíssima pela ponta nos metros finais para a linha de chegada.
- Minha esposa me dá muita dor de cabeça, Rosemary.
O cavalo oito venceu a corrida e os dois paralisam.
- Você apostou em qual cavalo? - perguntou o homem.
- Ih, bonitão, parece que temos um azarão aqui.
- Não acredito, era tudo o que tinha. - Puxou rapidamente o cartão com seu telefone da mão dela. - Você não me dá sorte, Rosemary, você não me dá sorte.
Guilherme David mora em Recife-PE, é formado em Direito e estudante de cinema. Ama narrativas desde a sua mais tenra infância e não consegue viver sem elas.
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