Gênero e sexualidade na literatura
 



Dicas

Gênero e sexualidade na literatura

Cinthia Dalla Valle


A literatura tem um papel ativo nas mudanças sociais ocorridas ao longo do tempo. Muitas obras já ajudaram e continuam ajudando a quebrar paradigmas e reduzir preconceitos dos mais diversos.
Estas temáticas “não ortodoxas” são responsáveis por incluir minorias por muitas vezes excluídas das artes, da literatura e da sociedade em geral. Mais do que incluir, elas se reconhecem nestas obras, ganhando voz e, mais do que isso, um rosto, uma identidade.

Conversamos sobre o assunto com cinco autores da Metamorfose, Adriana Mondadori (do livro Clitoria), Gabriel Moura (autor de Anéis de Saturno), Ralph Duccini (autor de Nas margens do azul), Jeferson Haas e Marcelli Von Reisswitz (autores da coletânea Diálogos). Eles deram dicas para quem deseja representar a diversidade de gênero na literatura sem correr o risco de cair em estereótipos.


Marcelli, Ralph, Jefferson, Gabriel e Adriana


Na sua opinião, a literatura contemporânea tem representado bem o tema da diversidade de gênero?

Adriana Mondadori: Percebo o tema bem representado em contos, romances e vem transitando bem na poesia. Contudo, creio, ainda de forma excepcional.

Gabriel Moura: Acredito que não. É claro, não consigo acompanhar a produção atual da literatura como gostaria, há muitos livros sendo lançados no mercado, e vários deles não chegam até mim, ou eu mesmo não vou até eles. O fato é que vejo poucos personagens membros da comunidade LGBTQ+ nas obras de ficção. Acredito que isso se dê pelo fato de haver pouco espaço para que estas vozes se manifestem.

Jeferson Haas: Acredito que exista um movimento para naturalizar estas histórias frente ao público, mesmo com uma movimentação intensa em direção ao conservadorismo. Há o lado positivo de existirem esses personagens, embora eu perceba a aplicação da heteronormatividade para gerar aceitação, o que limita as histórias. Talvez seja uma percepção limitada minha (nunca busquei leituras somente por tratarem da temática), mas as séries parecem desenvolver melhor o assunto, como em Sex Education, Orange is the new black, One day at a time, entre muitas outras, normalizando estas vivências com naturalidade.

Marcelli Von Reisswitz: Há muitas mulheres cis escrevendo e muitas obras escritas sobre e para elas. No entanto, quando falamos sobre a representação da comunidade Trans, ainda falta representatividade - embora exista muitos autores e autoras trans e/ou escrevendo sobre essa temática. Fica aqui minha sugestão do livro Orgulho de Ser, organizado pela Thati Machado. Além disso, sugiro a autora trans e gaúcha, Atena Beauvouir Roveda. No que diz respeito à sexualidade, nós LGBTQ+, estamos escrevendo mais e aparecendo mais em obras (até mesmo em séries e filmes). Na minha opinião, estamos longe do ideal, mas já estamos caminhando para que exista uma maior representatividade na literatura.

Ralph Duccini: Sim e não. Hoje em dia, a literatura tem tido flertes muito interessantes sobre a representatividade da diversidade de gênero, principalmente em relação a Poesia. Se pegarmos o movimento Slam Poetry e o entendermos como um movimento abrangente e cada vez mais forte no Brasil, podemos perceber que temas relacionados a população LGBT são tratados pelos Poetas LGBT, que cada vez tem se inserido mais neste tipo de batalha de poesia, visto também seu contexto sócio-político, de ser mais ligado às periferias e ter aproximação com o movimento hip-hop e de cultura negra. Um exemplo interessante para se conferir são as TransPoetas (no instagram: @transpoetas) que vem reunindo poetas de várias partes do país em um coletivo trans de poesia (a maioria desses poetas vieram do Slam). Contudo, pensar em representatividade de gênero, dadas as questões Trans e LGBT, é muito complicado, ainda mais em relação a prosa e a narrativa. Vemos hoje uma crescente onda de romances Young Adult com tema LGBT, mas ainda poucos autores e autoras são conhecidos, suas obras têm pouca circulação no mercado editorial, ganhando fraca notoriedade se comparadas a outros temas.
Há, inclusive, um estudo sobre isso:
https://editoramultifoco.com.br/loja/product/perspectivas-da-literatura-lgbt-young-adult-no-brasil/


Qual é a importância do lugar de fala neste tipo de texto?

Adriana Mondadori: Como falar sobre os sentimentos, as dores nas articulações, sobre a procura das lembranças na memória desgastada de um personagem de 90 anos, se tenho 50? O autor tem a responsabilidade de ir a campo, conviver, pesquisar, estudar para que seu personagem possa ser construído. No meu livro Clitória, há três poemas LGBTQ+ e, para eu conseguir chegar no âmago das sensações, mergulhei em alguns livros e filmes que retratam sobre o assunto e conversei com dois casais lésbicos, já que o livro aborda o orgasmo feminino.
Gabriel Moura: Sou branco, homem, heterossexual. Falo de uma posição cheia de privilégios. Meu lugar de fala não é o de um rapaz homossexual, como é o caso do protagonista do meu livro, o Felipe. Só pode ocupar este lugar de fala quem experiencia ou vivencia a homossexualidade. Posso, contudo, graças à literatura, imaginar como é a vida de alguém como o Felipe, baseado no que ouço, e descrever a sua história sob o meu ponto de vista.

Jeferson Haas: É sempre importante a gente ponderar o assunto para escrever ou comentar sobre ele. Não quero dar respostas muito fechadas, porque também não sou pesquisador da área e nunca busquei uma literatura focada em personagens LBGTQI+ (algo que percebo que posso melhorar, inclusive). Minha linha de pensamento é a do bom senso: uma autora ou um autor pode mergulhar no mundo LGBTQI+ com pesquisa, entrevistas e outros métodos de investigação e, sim, criar algo construtivo para os indivíduos deste grupo e além dele, unindo as pessoas para além da sexualidade.

Marcelli Von Reisswitz: O lugar de fala nada mais é do que literalmente o lugar de onde se fala. É óbvio que eu, mulher branca, cis e lésbica terei mais propriedade para abordar sobre esses assuntos do que um homem cis branco heterossexual, por exemplo. No entanto, não acho que é proibido escrevermos sobre algo que não somos. Acho que é possível sim desde que haja respeito, pesquisa e leitura. O trabalho de construção de uma personagem é complexo, ainda mais se tratando de escrever sobre opressões e sentimentos que não vivenciamos.

Ralph Duccini: A importância do lugar de fala se dá devido a quantas vezes estas pessoas foram silenciadas socialmente e artisticamente, tendo suas vivências apropriadas ou tomadas como fonte de estudo para a maioria cis-heteronormativa.

Neste contexto, certas experiências só podem passar pelas subjetividades daquelas pessoas que as vivem. E mesmo que possam ser apreendidas por pessoas não LGBT, é importante que uma parcela marginalizada da sociedade, e uma parcela tão plural, tenha suas vozes e suas expressões artísticas ouvidas. Tanto pela propriedade acerca dos temas que vão tratar, quanto para gerar o reconhecimento na população LGBT, que vai se reconhecer não só nas obras, mas no autor que está escrevendo, expandindo seus horizontes pessoais, que muitas vezes são limitados por uma sociedade que lhes nega a voz ou as possibilidades de ser quem são ou querem ser (inclusive profissionalmente).


O autor deve focar em dores específicas para estes públicos em particular ou transformar estas experiências e sentimentos em “histórias universais”, se é que isso é possível?

Adriana Mondadori: As histórias estão entremeadas em nosso dia a dia. Todos nós sofremos pelas mesmas mazelas e em algum ponto vamos nos identificar e refletir sobre o assunto. Tenho comigo que se não for, se transformam em histórias universais.

Gabriel Moura: Trabalhando no Anéis de Saturno, eu sempre tentei escrever da forma mais verdadeira possível. Coloquei-me no lugar do protagonista e imaginei como seria a sua vida, os seus sentimentos, as suas ações. Os conflitos que o personagem vivenciou, acredito, foram baseados em histórias que eu já ouvira ou presenciara antes, conflitos verdadeiros, pelos quais pessoas da comunidade LGBTQ+ costumam passar. Mas, em última instância, se está falando sempre de amor, de liberdade, de aceitação das diferenças, temas, de certa forma, universais.

Jeferson Haas: Minha resposta pode parecer carregada de uma aura espiritual, mas o fato é que todo indivíduo está em busca de amor, aceitação. Partindo desse princípio, já estamos conectados por termos uma busca em comum, e muitas vezes o leitor se encontra nas histórias mesmo sem a especificidade dessa dor. Acho importante transmutar dores pessoais também ao narrar.

Marcelli Von Reisswitz: Acho que não existe uma resposta correta. Tudo depende da intenção do/a autor(a) e qual o propósito da história. Por outro lado, tratando aqui sobre sexualidade, precisamos salientar sempre que uma pessoa LGBTQ+ é uma pessoa para além de ser LGBTQ+. Ou seja, é uma pessoa que vai ao supermercado, que trabalha, que tem filhos, que não vive para além da sua sexualidade e com quem se relaciona, e não deve ser reduzida só a esse aspecto.

Ralph Duccini: Não só é possível, como acredito que este seja o caminho que autores LGBT+ tem buscado cada vez mais em seus trabalhos: não focar só nas suas dores específicas, mas, a partir das dores e das experiências particulares, encontrar a universalidade de suas vivências e transformá-las em histórias universais, que não só comuniquem com outras pessoas LGBT, mas também com pessoas cis e heterossexuais. Pois embora existam particularidades das vivências LGBT, são ainda vivências humanas. E buscar os pontos universais destas histórias, muitas vezes, é retrazer uma humanidade que é tirada das pessoas e vivências LGBT+.


Como evitar que os estereótipos entrem nas histórias?

Adriana Mondadori: Ao compor um personagem, o autor precisar estudar e criar a sua ancestralidade para que seja construído com as suas raízes, com a bagagem que transporta da sua educação, com as suas vivências. As pluralidades que carregam definem as singularidades de cada um. Falo isso para a composição de qualquer personagem, não que tudo precise aparecer na história. Entendo que desta forma o autor será verdadeiro com a sua ficção.

Gabriel Moura: Acredito que assumindo uma postura ética e reflexiva sobre a própria escrita.

Jeferson Haas: Muita pesquisa e propósito ao trazer o personagem, seja ele de qualquer minoria. Estas pessoas existem na vida real, estão em todas as famílias e lugares, não é necessário transformá-las em acessórios na trama.

Marcelli Von Reisswitz: Com muita pesquisa, ler sobre o tema de forma não superficial. Existe uma dificuldade muito grande nas pessoas em buscar conhecimento sozinhas sobre temas como racismo, homofobia, machismo. Por exemplo, é importante entendermos que gênero e sexualidade, apesar de se relacionarem, são coisas distintas. Uma pessoa trans, por exemplo, pode ser homossexual. A falta de conhecimento gera o reforço de estereótipos. É essencial o aprendizado e a desconstrução constantes. O mundo está em contínua mudança e nós, autoras e autores, precisamos acompanhá-lo.

Ralph Duccini: Se você for uma pessoa LGBT eu diria, como diria para qualquer outra pessoa que escreve, é escrever com verdade. A maior forma de fugir de estereótipos é escrever com sinceridade, honestidade e coragem. Sem querer mascarar ou sed efender de seus personagens, temas ou questões pessoais. Agora, se você é uma pessoa não LGBT e está escrevendo sobre o assunto, peço o favor que entreviste pessoas LGBT a respeito do que você quer escrever. Você tem proximidade com estas pessoas? Com a vivência destas pessoas? Se sim, muito bem, converse com seus amigos a respeito do livro ou do texto que está escrevendo. Se não tem, pare e se pergunte se é este mesmo o livro que deveria escrever. E se sua resposta ainda for sim, então busque escutar estas pessoas. Faça entrevistas, assista a documentários, converse com estas pessoas em um bar, na rua, chame-as para tomar um café na sua casa. O único jeito de fugir dos estereótipos é conhecer as pessoas que vão se ver neste personagem, é entender as humanidades destas pessoas, fugir do caminho mais fácil, que é o da representação, da caricatura ou do imaginário. É tratar com a realidade.


Qual é a importância do posicionamento do autor no dia a dia, incluindo as redes sociais, para que os textos sejam reconhecidos pelo seu público?

Adriana Mondadori: Cada autor tem o seu tom de escrita e a cada obra procuramos encontrar um tom dentro do nosso tom. Ao contrário das aparências que as redes sociais provocam, me coloco de forma autêntica sobre o tom da minha escrita. Transito no universo da escrita afetuosa, da sexualidade e do erotismo. Entendo que nos aproximamos do leitor com o nosso olhar, o sorriso, o modo de falar. É interessante interagir quando estamos escolhendo os temperos para aromatizar a cozinha, ao regar as plantas, quando estamos de pijama e sem maquiagem ou de scarpin, colar de pérolas e batom vermelho. O contato virtual inspira o leitor.

Gabriel Moura: Sou autor iniciante no mercado, tenho pouca experiência, mas acredito que o escritor deva estar disponível para o público, ao alcance das pessoas, para que haja a possibilidade de diálogo, de críticas, de troca e de crescimento. As redes sociais com certeza ajudam a construir esta ponte.

Jeferson Haas: É engraçada essa ambivalência, pois o escrever denota solidão, recolhimento. As redes podem agregar com bastidores, escrever e se arriscar em temas diversos e trocar com as pessoas. Tenho buscado mudar minha abordagem nas redes para ir além de quem me conhece, até para desbravar novos territórios a partir de novas trocas.

Marcelli Von Reisswitz: Atualmente acredito que o posicionamento, principalmente nas redes sociais, é essencial para autoras e autores e, honestamente, para qualquer profissão. Estamos vivendo em um contexto político nada favorável às minorias e precisamos nos apoiar. Para além disso, é importante criar e estreitar laços com o teu público. As redes sociais têm esse papel importante na identificação e na divulgação de conteúdos conforme o teu nicho.

Ralph Duccini: É uma importância político-pessoal. Este é um tema delicado que envolve a humanidade e a subjetividade de muitas pessoas. Se o autor ou a autora não for uma pessoa LGBT e quiser falar sobre este assunto, entender essa pessoa como uma aliada política, principalmente num momento de inúmeros ataques às conquistas que a população LGBT, como minoria política, vem conseguido no Brasil, é muito importante.

Por muitos séculos, pessoas não LGBT trataram sobre o tema LGBT de forma pejorativa, agressiva e intencional para desmerecer a humanidade e a vivência destas pessoas, buscando criminalizá-las ou fazer perdurar o preconceito. Então, é comum, neste tipo de situação, que existam receios. Se a pessoa já for uma pessoa LGBT, é natural que, se a sua literatura tratar sobre estes temas, vai ser mais legitimado. Do contrário, é importante que a pessoa se posicione, inclusive nas redes sociais, que hoje funcionam como uma vitrine pessoal e profissional.


Que livros clássicos e contemporâneos você indicaria sobre essa questão?

Adriana Mondadori:
Amora (Natália Borges Polesso) - 2015
Carol (Patricia Highsmith) - 1952
Azul é a cor mais quente (Juliet Marrot) - 2010
Elisa y Marcela (Narciso de Gabriel) - 2008

Gabriel Moura: No mundo da ficção, recomendaria três livros: Meia-noite e vinte, do Daniel Galera, Minha querida Sputnik, do Haruki Murakami, e Sal, da Letícia Wierzchowski. São três livros de leitura agradável e fácil, e que abordam de maneiras diferentes o tema.

Jeferson Haas: Recomendo este link para dar mais embasamento:
https://medium.com/midium/9-livros-com-temática-lgbt-para-se-ter-orgulho-e0614c106236

Marcelli Von Reisswitz: Antes de indicar, gostaria de reforçar, mais uma vez que, apesar de se relacionarem, gênero e sexualidade não são a mesma coisa. Assim, indico os livros abaixo que abordam essas questões:

- Amora, Natalia Borges Polesso
- Orgulho de Ser, organizado por Thati Machado
- Contos Transantropológicos, Atena Beauvouir Roveda
- Velhice transviada: Memórias e reflexões, João W. Nery
- Meu útero é do tamanho de um punho, Angélica Freitas
- Gênero: uma categoria útil para análise histórica, Joan Scott
- Problemas de Gênero – Feminismo e Subversão da Identidade, Judith Butler

Ralph Duccini: Vou fazer indicações contemporâneas, mais de autores do que de livros. Começando por mim: instagram @odekasa. Recomendo o livro "Nas Margens do Azul" que, através de uma perspectiva feminina, trata sobre afetos bissexuais em meio a um turbilhão político, publicado pela Metamorfose. Tom Grito: @tomgritopoeta, publicado em algumas antologias; Marcelo Maldonado com o livro "Aquele Abraço", romance LGBT de temática gay; tem uma performer aqui do Rio de Janeiro, a Biancka, que faz parte do coletivo Xica Manicongo, que trabalha com poesia. Como falei antes, o coletivo TransPoetas: @transpoetas, de Porto Alegre; o poeta slammer, bissexual; Eslly Ramão: instagram: @esllyrp; o poeta Nego Preto: instagram @negopreto_np, que foi vencedor do Slam RJ, o campeonato estadual, falando sobre negritude e bissexualidade nos seus poemas e tem um trabalho super consistente. Acredito que, conforme você for pesquisando, vai encontrar muitos nomes.

 

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