Sogras, Quarteis e Direito de Família
 



Contos

Sogras, Quarteis e Direito de Família

Marco José Stefani


Foi numa sexta-feira chuvosa. A mãe entrou primeiro. O cliente, depois. Um homem pequeno, em cujos olhos se podia ver um pedido mudo de socorro.

A senhora vestia eslaque verde, sem estampas. Tinha na altura da barriga um cinto branco e largo. Outra faixa, idêntica, atravessava-lhe a barriga protuberante para manter uma enorme bolsa, branca, junto ao quadril. O traje lembrava uniforme da polícia do exército, a bolsa imitando coldre a insinuar ordem de obediência. Tinha uma voz grave e monolítica, num sotaque de colônia italiana:

- Bom-dia, Doutor! O senhor nos foi muito bem recomendado. O caso é sério. O Júnior foi enfeitiçado por uma megera, que vai querer bens e pensão.

A mãe falou por mais de trinta minutos, através de frases sem vírgulas e ponto final. Disse que o filho, um virgem tardio, fora seduzido pela nora, a quem a velha atribuiu fama de safada. Contou que Júnior emagreceu muito nos primeiros meses de casamento. Alimentava-se mal, comida ruim da mulher. Desmilinguido, sobrou no alistamento militar e encerrou o destino que lhe havia sido reservado: seguir os passos do pai e se tornar oficial do Exército Brasileiro.

Da janela de casa, a mãe ouviu a nora reclamar do filho. Largou tudo, atravessou o pátio e invadiu a casa dos fundos, em defesa de Júnior. A discussão terminou em bofetadas.

- Está vendo esse arranhão, Doutor? Foi ela, com aquelas unhas de puta. Pois saiba que eu deixei bem mais que isso na cara dela. A panela que eu esqueci no fogão aceso a salvou. Teria apanhado mais.

A boca miúda, coberta de batom vermelho, abriu e fechou sem trégua. Língua batendo no palato, caindo de volta e se levantando numa ladainha que parecia não ter fim. Olhos fixos nos meus, como panóptico a exigir minha atenção absoluta. Raras vezes miraram o teto ou a parede do escritório, dando-me fuga para perscrutar a expressão de Júnior: postura curvada na poltrona e olhar catatônico sobre a planície lisa e vazia da minha mesa.

Júnior tinha os olhos fixos no nada.

Aquela postura me intrigou. O que ele tanto olhava? Mecanismo de defesa contra a mãe opressora? Lembrei das frias psicanalistas e do quanto consertam aquilo que as mães amorosas estragam. Coitado!

A velha continuou:
- Para lá ele não volta. Vai ficar comigo, na casa da frente. Ela que pegue seus trapos e suma! Afinal, a casa dos fundos também é minha, Doutor. Emprestei a eles para ficarem por perto, pois eu tinha certeza que Júnior sofreria nas mãos dela. Deus sabe o que faz. Pior seria se tivessem ido morar longe. Aí sim, ela teria acabado com ele. Megera!

Júnior continuou ali, curvado e mudo. Olhar parado enquanto minha paciência se exauria.

Eu aprendi com as sogras mais do que com o Zaratustra de Nietzsche: ninguém deve suportar o insuportável; a felicidade é o prêmio da vitória do leão sobre a vida infeliz do camelo. A maioria nasce, cresce e morre camelo: carrega nas costas toda a neurose alheia. Para se libertar, é preciso rugir, pondo os invasores a correr. Só depois a gente volta a ser criança, encontrando a felicidade duradoura de que é feito o Reino dos Céus aqui e agora, nesta breve passagem que é a vida.

Pobre casal.

Não sabia a tragédia que é relevar, por tempo indeterminado, as inconveniências das sogras intrometidas. Não lhe disseram que a sogra é a pior vizinha que alguém pode suportar?

De volta a mim, vi que a velha ainda falava. Dei-lhe um basta.

- Minha senhora! Eu entendi a situação. Minha única dúvida é a seguinte... Afinal, com quem o Júnior se aliviava?

- Não entendi, Doutor. Como assim com quem ele se aliviava?

- Refiro-me às melhores músicas de Roberto Carlos... nos lençóis macios/amantes se dão..., travesseiros soltos/roupas pelo chão..., vou cavalgar por toda noite... eu e ela/eu e ela. Refiro-me ao côncavo e convexo que Roberto tanto fala. Em síntese, com quem o Júnior dormia? Com a mulher ou com a senhora?

- Com... com ela, obviamente, Doutor!

- Então me faça um grande favor. Saia e espere seu filho lá fora.

Depois que a velha se retirou, virei para o cliente e lhe perguntei:

- Então, Júnior. Qual é o problema?

- Nenhum, Doutor. Eu só quero voltar para casa e ficar com minha mulher.

 

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