O livro custa caro? Reflexões dobre o preço e valor do livro
 



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O livro custa caro? Reflexões dobre o preço e valor do livro

Com Ciência - Revista Eletrônica de Jornalismo Científico


Por Haroldo Ceravolo Sereza

A sensação de que o preço do livro é alto deriva não de um aumento real do preço do produto, que se tornou mais barato num momento de aumento de renda dos mais pobres. Ou seja, havia um duplo movimento que favoreceria a percepção do barateamento do livro. Essa percepção não se materializa por uma pressão contrária: nos últimos anos o capitalismo não apenas nos tomou tempo de lazer para transformá-lo em trabalho, mas tomou também tempo de descanso para transformá-lo, por meios digitais, em consumo.

Afinal, o livro é caro ou barato? O que determina a percepção de preço e de valor do livro no mercado brasileiro? A questão frequentemente é tratada de modo impressionista ou excessivamente objetiva, sem espaço para dimensões outras que as avaliadas quantitativamente. Uma reportagem recente do jornal gaúcho Zero Hora, sem apresentar esses dados, no entanto, não hesitou em afirmar em seu lide: “Há um consenso entre os leitores: o preço do livro deveria ser mais baixo”.

O gráfico abaixo apresenta a variação do preço real do livro, em comparação com os preços de mercado, segundo a mais longeva pesquisa sobre o mercado editorial brasileiro, realizada pela Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas) para as duas mais representativas entidades do setor, a Câmara Brasileira do Livro e o Sindicato Nacional dos Editores de Livros. O levantamento é feito reunindo dados fornecidos por editores de livros do país. A partir de um questionário anual, a pesquisa chega a dados sobre o tamanho do mercado e sua divisão (governo, livrarias, vendas diretas etc.). Um dos dados que vêm sendo acompanhados desde 2006 é justamente o do preço médio dos livros. Como sugere o gráfico, o mercado identifica uma queda no preço real (descontada a inflação) da ordem de 35% desde 2006. De 2015 em diante há uma estabilização do preço real, ainda que o preço nominal do livro tenha crescido pouco menos de 30% nesses 12 anos.


Fonte: Pesquisa Fipe-CBL-SNEL, 2018. . Acesso em 15/12/2019.

Dados isolados podem corroborar essa tese. Um exemplo concreto: em abril de 2004, foi lançado o livro A Revolução dos Cravos (ed. Alameda), de Lincoln Secco, um livro de 296 páginas em formato 14 x 21 (o mais tradicional formato de livro no país) por R$ 38,60. Corrigido pelo IGP/M até novembro de 2019, o livro custaria R$ 94,93; pelo IPCA, R$ 89,41[1]. Atualmente, um livro semelhante, escrito como uma tese ou dissertação por um professor universitário, custaria bem menos. Fale com eles, de Daisy de Camargo, da mesma editora, lançado em 2019 com um tamanho 9,5% menor (268 páginas, mesmo formato), tem o preço de capa de R$ 50,00[2], um decréscimo, em termos reais, evidente. Sugiro também aos economistas que nos leem a verificação do preço do livro comparado à gasolina, à pizza e à entrada de cinema – entre outros. Quase que certamente, o livro viveu uma deflação que não se verificará, em igual proporção, com a maioria dos preços de produtos presentes no mercado, sejam eles essenciais ou não, duráveis ou não, do mercado de cultura ou não.

Além de a curva apontar para a redução do preço real do livro, há um fator que, em tese, jogaria a favor da percepção contrária. O livro de papel permanece sendo uma mercadoria não efêmera. Talvez seja um dos objetos do dia a dia cuja “vida útil” se imagina para além da própria vida do primeiro leitor. As bibliotecas ainda são herdadas, até mais do que móveis da casa. As pessoas compram livros imaginando que poderão ser lidos pelos filhos, sobrinhos, netos ou amigos. Em Da dificuldade de ser cão[3], pensando filosoficamente a questão dos animais domésticos, Roger Grenier afirma que eles são animais para sofrer, uma vez que o dono de um cão ou gato imagina, em geral, que os animais morrerão antes dele. Num certo sentido, podemos pensar o oposto dos livros: são objetos da esperança, uma expressão da humanidade do leitor que continuará viva após sua morte. Não à toa, as bibliotecas de grandes pensadores são preservadas, às vezes com requintes fetichistas: a biblioteca de Florestan Fernandes, na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), por exemplo, foi “recomposta” mantendo a organização deixada pelo pensador – simbolicamente, preservando sua forma organizar as ideias.

Eventualmente, contrariando a maré da opinião pública, representantes do setor editorial expressam o que é discutido nos bastidores: em setembro de 2016, a diretora do grupo Record, Sonia Jardim, foi entrevistada pelo jornal Folha de S.Paulo e declarou que as editoras estavam “desde 2004 sem subir preços de acordo com a inflação. Criou-se na cabeça do consumidor as faixas de preço de R$ 19,90, R$ 29,90…”. O título da matéria era ainda mais explícito: “Preço do livro precisa subir, diz Sonia Jardim, presidente do grupo Record”. Em 2014, o editor Ivan Pinheiro Machado, proprietário da LP&M, afirmou à Zero Hora, categoricamente, que o livro no Brasil “é muito barato. Principalmente se for comparado à Europa e aos EUA”, defendendo, também a redução na prática de pagamento de direitos autorais, o que evidentemente provocou forte reação de autores:

Olha aqui (pega ao acaso um livro francês na estante): este livro de bolso custa 15 euros, cerca de R$ 50. Dias atrás, estava em Ouro Preto e um autor reclamou que os livros eram caros. Respondi: "Caro é o direito autoral, se baixar o direito autoral para 5% vai baratear". É 10% do preço de capa. Quando vendo um livro de R$ 60 para uma grande rede de livrarias a R$ 30, R$ 6 ficam com o autor. Então o autor é dono de 20% da editora, ninguém ganha 20% nesse ciclo, nem a gráfica, nem os editores[4].
Os dados e as declarações, no entanto, contrastam com a percepção corrente, expressa em afirmações como “o livro é caro no Brasil”, “o brasileiro lê pouco”, “o brasileiro não tem dinheiro para comprar livros”. De onde, então, partiria essa percepção generalizada? Por que uma dúzia de anos de queda nos preços não é capaz de mudar o senso comum sobre o livro e o mercado editorial?

Como estamos no campo das ideias e opiniões, não é possível afirmar com certeza. Parto, neste texto, do princípio de que a razão da ideia recorrente do “livro caro” está ligada à especificidade da mercadoria livro. Essa especificidade faz com que o livro seja percebido, no mercado do consumo, como uma mercadoria especial, carregada de valores simbólicos, alguns deles não mensuráveis em dinheiro ou com correspondente valor de troca. Compreender essas especificidades ajuda a pensar melhor o mercado editorial, que considero estruturante para a economia e para a democracia, permitindo traçar estratégias e políticas públicas que superem a meta, talvez menos significativa do que se imagina, de baixar o preço do livro novo.

Denis Diderot, ainda no século 18, ao escrever sobre as especificidades do livro, escreveu um pequeno texto com um longo título: “Carta histórica e política endereçada a um magistrado sobre o comércio do livro, sua condição antiga e presente, seus regimentos, seus privilégios, as permissões tácitas, os censores, os vendedores ambulantes, a travessia das pontes do sena e outros temas relativos à política literária”. Como o título gigante mostra, a cadeia econômica do livro constitui uma questão complexa e como tal deve ser tratada[5].

O primeiro fator a se registrar é que o livro é uma das mais antigas mercadorias do capitalismo, essencial na sua construção não apenas ideológica, mas também na organização como mercado. Como mercadoria, o livro, no entanto, não entra completamente na lógica das chamadas “leis de mercado”: um livro não concorre diretamente com outro livro. Os livros podem se parecer uns com os outros materialmente, mas são diferentes em sua essência, que está no conteúdo, e é esse conteúdo que define o valor de uso único, para cada leitor, da mercadoria livro. Duas marcas de pneus disputam o consumidor que precisa de pneus: o valor de uso das duas marcas é semelhante, ainda que uma possa ser melhor ou mais barata que a outra. No livro, não: um consumidor que precisa de um livro não precisa, necessariamente, do outro.

Essa característica única do livro faz com que sua feitura seja, simultaneamente, artesanal e industrial: a primeira fase da produção de um livro, sua escritura, tradução e, parcialmente, sua diagramação, responde a feituras únicas, para cada obra, não inteiramente reprodutíveis ou reaproveitáveis de uma edição para a outra. Após essa fase, há outra, que responde a critérios industriais e de distribuição física (e, atualmente, digital) muito mais associadas à modernidade: a impressão em gráficas e a comercialização por diversos meios, seja a banca de jornal, a livraria, seja a venda pela internet e, mais contemporaneamente, a difusão por redes de computador.

Todas as mudanças que aceleraram a produção e a reprodução do livro e, em boa medida, colaboraram na redução do preço do livro nos últimos anos, não mudam substancialmente, no entanto, um aspecto fundamental da economia do livro: seu consumo. O tempo de leitura não muda radicalmente com a impressão sob demanda ou com a difusão digital. Para usar o linguajar matemático e econômico, podemos dizer que o tempo e o volume de consumo é praticamente fixo quando o tema é o livro. A leitura de uma página, pelo mesmo leitor, independentemente de ela ser feita em papel ou no meio digital, durará um tempo semelhante. Mais imaterial ainda é a contabilização do tempo para a compreensão do que foi lido, o que fica aqui apenas como sugestão.

O tempo, acreditamos, portanto, é chave para compreender a percepção do preço do livro como alto. Ainda que tal contabilização não entre diretamente no “cálculo” do preço do livro pelo editor e pelo livreiro, esse tempo e o valor deste tempo estão presentes na cabeça do leitor. Essa relevância do tempo se expressa de muitos modos, e uma das formas contemporâneas é o meme: abaixo, segue uma reprodução da página de resultados do Google para imagens que utiliza a frase, em inglês, “So many books, so little time”:



Resultado da busca pela frase “So Many Books, So Little Time”, no Google . Acesso em 15/12/2019.

O tempo para ler o livro que vai adquirir é um fator fundamental para o leitor. Um clube de leitura bem sucedido mantém, em sua página na internet, o que chamou de “calculadora literária”[6], uma ferramenta para os assinantes atuais ou futuros calcularem quanto tempo precisam para concluir uma leitura. Como se trata de um plano de compra recorrente, do tipo “clube do livro”, ou seja, o assinante receberá a cada período pré-determinado um novo livro, é central para a empresa estimular o leitor a controlar o ritmo da leitura das obras que recebe – se o leitor deixar de ler o livro enviado por algumas vezes, ele torna-se um sério candidato a deixar de assinar o serviço. Assim, a pergunta que a calculadora faz é bastante objetiva: “Quanto preciso ler por dia para ler 1 livro por mês?”

Essa questão não é nova para os editores, que intuitivamente ou às vezes com discursos aparentemente ingênuos se rebelam contra “as modernidades” que roubariam tempo de leitura. O surgimento do livro de bolso, ainda no século 19, na Inglaterra, foi resultado não apenas da evolução da capacidade produtiva e do uso do papel barato para as edições populares: para a classe operária urbana, ainda lutando por jornadas de trabalho mais razoáveis, o tempo de leitura era exíguo. Foi “criando tempo” para a leitura dos trabalhadores, a partir de 1848, que a Routledge, antes uma editora sem tanto sucesso entre tantas outras, ao lançar a coleção “The Railway Library” (Biblioteca da Ferrovia), tornou-se uma grande corporação e hoje é uma das principais publicadoras de obras acadêmicas do mundo[7]. O livro precisava caber no bolso para poder ser lido no tempo das viagens de trem. Os “pocket books”, sintomaticamente, se associavam assim a outro objeto que também viajava no bolso das pessoas e que estava diretamente ligado ao tempo: o relógio. O bolso do “livro de bolso” não é, portanto, uma metáfora apenas para o preço baixo e para a portabilidade, mas é também um indicador de controle do tempo de leitura.

E atualmente? Vivemos de fato um processo de aceleração do tempo? Ou temos, por outro lado, uma expansão do capitalismo sobre o tempo individual? Parece-nos desnecessário apontar que há uma sensação de falta de tempo generalizada pela população e uma pressão para a aceitação de trabalhos sem respeito à jornada constitucional – no Brasil, de 44 horas semanais.

Como pouco cabe mais dizer neste texto, gostaria de propor esse salto: a sensação de que o preço do livro é alto deriva não de um aumento real do preço do produto, que, como sugere a pesquisa da Fipe, se tornou mais barato num momento de aumento de renda dos mais pobres. Ou seja, havia um duplo movimento que favoreceria a percepção contrária, a do barateamento do livro. O movimento do mundo, no entanto, sugere que essa percepção não se materializa por uma pressão contrária: o capitalismo não apenas nos tomou, nos últimos anos, tempo de lazer para transformá-lo em trabalho, mas tomou também tempo de descanso para transformá-lo, por meios digitais, em consumo.

Num cenário como esse, dois movimentos simbólicos “encarecem” simbolicamente o livro e parecem ser mais fortes que os movimentos que chamaríamos de “concretos”. O tempo torna-se na prática mais escasso para o leitor, o que, associado à concorrência com outras formas de entretenimento e estudo, mais rentáveis para o capital, torna o custo do livro – posterior à sua compra – para o leitor muito mais alto.

Ampliar o tempo de repouso e limitar as abordagens de estímulo ao consumo: essa seria, hoje, a essência de um projeto que visasse a baratear, de fato, o preço da leitura.

Haroldo Ceravolo Sereza é jornalista formado pela ECA-USP e doutor em literatura brasileira pela FFLCH-USP. Autor dos livros Florestan – A inteligência militante (Boitempo, 2005), Trinta e tantos livros sobre a mesa (Oficina Raquel, 2018) e coautor de À Espera da Verdade – histórias de civis que fizeram a ditadura militar (Alameda, 2016). Premiado como editor com o Jabuti de Livro do Ano – 2015, categoria não-ficção, com A Casa da Vovó – Uma biografia do DOI-CODI , de autoria do jornalista Marcelo Godoy. É editor da Alameda Casa Editorial desde 2004 e diretor de redação do site Opera Mundi desde 2009. Crítico literário, trabalhou no jornal Folha de S.Paulo como correspondente em Paris e nas editorias Brasil, Cadernos Especiais e Ilustrada. No jornal O Estado de S. Paulo, foi repórter do Caderno 2, especializado em literatura.

[1] Para corrigir os valores, utilizamos a “Calculadora do Cidadão” do Banco Central do Brasil. < https://www3.bcb.gov.br/CALCIDADAO/publico/corrigirPorIndice.do?method=corrigirPorIndice >. Acesso em 15/12/2019.

[2] Segundo o site da editora. < http://www.alamedaeditorial.com.br/historia/fale-com-eles >. Acesso em 15/12/2019.
[3] Grenier, Roger. Da dificuldade de ser cão. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

[4] Zero Hora, 9/8/2019. Ivan Pinheiro Machado: “Pessoas que criam ideias para livros digitais não entendem de cultura ”. Acesso em 15/12/2019. A nosso ver, a questão dos direitos autorais é secundária na discussão que estamos propondo, de modo que a deixaremos de lado neste texto.

[5] Uma tradução com o título resumido Carta sobre o Comércio do Livro foi publicada pela editora Casa da Palavra em 2002). Diderot, Denis. Carta sobre o comércio do livro. Tradução: Bruno Feitler. Rio de Janeiro/Cotia: Casa da Palavra/Ateliê, 2002.

[6] TAG Livros. Calculadora literária. < “https://taglivros.com/calculadora >. Acesso em 15/12/2019.

[7] Conf. o verbete “Routledge, George”, do Dictionary of National Biography, 1885-1900. . Acesso em 15/12/2019.

https://en.wikisource.org/wiki/Routledge,_George_%28DNB00%29

 

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