Luisa Geisler teve seu livro `Enfim, capivaras` proibido por conter palavrões
RIO - Na última terça-feira (12), a escritora Luisa Geisler soube que não participaria da Feira do Livro do Nova Hartz, no interior do Rio Grande do Sul. Por telefone, um funcionário da prefeitura municipal, organizadora do evento, alegou que seu último livro "Enfim, capivaras", voltado ao público jovem, continha "linguajar inadequado". O texto abaixo é uma reflexão sobre o caso.
ENFIM, PALAVRÕES
Você provavelmente nunca ouviu falar de Nova Hartz, no Rio Grande do Sul. Esse município com nome de marca de relógio tem 21 mil habitantes. Para a feira do livro da cidade, fui chamada para conversar com alunos de sexto a nono ano, 11 a 15 anos. Adquiriram meu livro "Enfim, capivaras" em final de setembro. Uma semana antes do evento, sou informada do cancelamento da minha participação. Enfim, capivaras não era adequado para jovens, em especial pela linguagem.
"Enfim, capivaras" foi escrito e pensado para o público jovem. Conta a história de um garoto mentiroso compulsivo que inventa ter uma capivara de estimação. Amigos seus, furiosos com várias de suas mentiras, resolvem pagar para ver. O mentiroso compulsivo diz que ela fugiu. Entre seis da tarde e seis da manhã, um grupo de cinco adolescentes tenta resgatar ou roubar uma capivara. Dentro disso, há personagens confusos sexualmente, relacionamentos mal resolvidos, álcool, salgadinhos e, claro, capivaras de gravata em carrinhos de mão.
Os personagens falam como adolescentes falam. Usam gírias e palavrões. Não pedem "por favor", nem dizem "obrigada". Eles se xingam. E esse é o problema para nossa cidade-relógio parada no tempo. Alunos me informaram que seus professores disseram que esse tipo de linguajar não pode existir em livros. Não é apropriado. Os alunos apenas tiveram acesso ao livro via professores, poucos leram e depois dessa não sei o que será feito com esses exemplares.
Uma aluna, que não identificarei, me mandou uma mensagem no Instagram. "Enfim, capivaras" é "um dos melhores livros" que ela já leu, superengraçado, divertido, falava sobre assuntos que devem ser mais discutidos". Segundo ela, eu ia ser a primeira escritora cuja presença na feira a faria realmente feliz.
Mas esse é o problema dos livros com palavrões, livros com realidade. Meu objetivo com o livro, se é que existe um, é formar leitores. Não é um manual ditatorial de bons costumes. Desculpa, eu não escrevo contos de fadas. Você pode ler e discordar. Pode discutir a linguagem, a intenção de uma linguagem no lugar da outra. O leitor não é burro. E o leitor jovem é brilhante, eu sei porque conheço.
Sou escritora há oito anos. Já fui a muitas escolas, onde trabalhamos livros mais `difíceis de lidar` que o `Capivaras`, que sequer foram pensados para jovens. Livros com discussões sobre incesto, palavrões, uso de drogas e álcool e temas ainda mais pesados, como trem lotado em horário de pico.
"Madame Bovary" tem adultério. "Grande Sertão: Veredas" tem mulher vestida de homem. Vamos queimar "O cortiço". "Malhação" tem enredos pesados desde o meu tempo. A série-febre "13 reasons why" tem suicídio. Acima de tudo: o que tem na realidade dos jovens em escolas municipais hoje em dia? Mais do que palavrão e capivara.
Quando vocês falam que uma linguagem mais informal não merece ser sequer lida, você está dizendo que o jeito como esse jovem fala é inferior, sem valor. Você fala que o rap não tem mérito como parte da cultura. A linguagem é plástica e complexa na sua completude: o mundo é plástico e complexo na sua completude.
A discussão é maior que isso. Quiçá alguém não queira formar pessoas que gostam de ler, porque ler é pensar. E gostar de ler é gostar de pensar. Um livro que é gostoso de ler é perigoso. Ano que vem são eleições municipais, se parar para pensar.
Existem palavrões antes de existir livros com palavrões. Você pode dizer que uma situação não existe, ela continuará existindo. Existem escritores que são cancelados de eventos literários por posicionamento político e conteúdo dos livros. Deputados resolvem decidir o que pode ser leitura obrigatória ou não. E falar disso ajuda a resolver o problema. Ajuda a resistir.
Livros não estão a serviço de ideologia nenhuma, muito menos essa retrógrada e censuradora. Vão à merda.
Procurada pela reportagem do GLOBO (e pela própria autora) para dar uma posição oficial, a prefeitura de Nova Hartz ainda não respondeu.
O livro chegou a ser discutido na Câmera de Vereadores de Nova Hartz na sessão da última segunda-feira (11), como se vê no video abaixo a partir do minuto 55:
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