O calor do dia finalmente dissipou, e uma brisa agradável entra pela janela meio aberta do carro. Paulo coloca o gorro vermelho e coça o rosto - não vê a hora de tirar a barba falsa. Olha para o lado e se certifica de que o saco de lona verde está onde o deixou no banco do passageiro.
Paulo cantarola baixinho uma cantiga de Natal, e abre o porta-luvas. Guarda a cartinha da Tati, seis anos, que buscou no projeto comunitário, e pega luvas de couro pretas. Meio quente para isso, mas faz parte.
Percebe movimento no fim da rua e olha para frente com atenção. Um homem dobra a esquina, vindo em direção ao carro. Ele cambaleia, arrastando os pés na calçada. Tropeça em um ladrilho quebrado e quase cai, mas recobra o equilíbrio no último instante. Observa o homem passar reto, sem sequer perceber sua presença, e dobrar na entrada da terceira casa da rua.
Paulo pega o saco no banco ao seu lado e sai com cuidado para não bater a porta. Em alguns passos rápidos, suas botas deslizando silenciosas no concreto rachado, alcança o homem. Parado atrás dele, Paulo passa um braço ao redor de seu pescoço e usa o outro para prendê-lo no lugar, apertando forte. O homem arregala os olhos e reage com movimentos lerdos que logo cessam. Paulo cobre sua cabeça com o saco e amarra com firmeza. Ergue-o por debaixo dos braços e arrasta até o carro, onde abre o porta-malas e o joga para dentro. Antes de trancá-lo, puxa do bolso uma abraçadeira plástica e lhe prende as mãos por trás das costas. Volta para o volante e liga o motor, mas não acende os faróis até passar algumas quadras. Cantarola com o rádio durante toda a viagem até o sítio.
O sujeito está mais alerta quando sai do porta-malas, mas dizer que está sóbrio seria exagero. Guiando-o com uma mão firme em seu braço, Paulo o mantém de pé conforme tropeça pelo terreno desde a garagem até os canteiros de flor nos fundos da casa. Entre perguntas e súplicas, para as quais não obtém resposta, a respiração dele soa difícil sob a lona que cobre a cabeça.
Eles param e Paulo o instrui a se virar, de forma que fiquem cara a cara. Fedendo a álcool e suor, o homem pergunta com a fala enrolada:
Isso... Isso é sobre dinheiro? É do jogo? Ou... Ou do bar? Eu...
Paulo o interrompe ao colocar uma mão brusca em seu ombro, e o sente tremer. Mantém a posição por alguns segundos, as pontas de seus dedos cravam na pele do outro. Enfim diz:
Crianças nem sempre confiam nos adultos. Mas confiam no Papai Noel. Sente-o ficar tenso. A Tati perguntou se era malcriada por não gostar. Por sentir dor.
Em sua experiência, é nesse momento que as súplicas aumentam. Ou, como neste caso, param por completo. Com a mão livre, Paulo arranca o saco de sua cabeça; ao mesmo tempo, usa a outra mão para empurrá-lo para trás. O homem cai quase dois metros dentro do buraco e atinge o solo com um baque surdo. Ele olha boquiaberto para cima, os olhos arregalados mal piscam.
Paulo ergue a pá. Atingido pelos primeiros punhados de terra jogados para dentro da cova, o pai de Tatiana começa a sacudir a cabeça e mover os lábios até que sons voltem a sair. Rola no espaço que tem e tenta se erguer, mas o pânico e as amarras o trazem de volta ao chão.
Conforme o buraco diminui, os gritos se abafam. O gorro, a barba e as luvas estão jogados na grama, tirados em algum momento da noite. Alguns pássaros já cantam nas árvores e o céu ao longe começa a clarear quando Paulo limpa o suor da testa, sujando-a de terra. Apoia-se na pá com o antebraço e suspira satisfeito. Mais tarde voltará para plantar algo aqui. Flores, ou talvez mais uma horta. Dá de ombros e larga a pá. Está na hora de entrar e tomar um café.
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Marina Mainardi é formada em Ciências Biológicas pela UFRGS. Com interesse nas diferentes formas de se contar histórias, costuma escrever mistério e fantasia. Participa do
Curso Livre de Formação de Escritores da Editora Metamorfose.
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