Glicemia
 



Contos

Glicemia

Jeferson Haas


Os segundos batucavam no peito de Sandra. Sentada na varanda do apartamento no terceiro andar, visualizou a silhueta da vizinha, grávida de sete meses, na portaria. Acordou de seu transe e começou a andar pela casa. Circundou a sacada, entrou na sala e sentou no chão por alguns minutos. Levantou-se sem pressa para ir até a cozinha. Tomou um copo de água e foi até a área de serviço, onde as roupas penduradas no varal afagaram seu olfato enquanto deslizava os dedos pelos tecidos. A abertura na janela permitia a entrada de uma brisa leve, e Sandra buscava relembrar como desfrutar desses momentos. Um sopro de vida – principalmente com os gritos de euforia das crianças no pátio e espalhadas pelo condomínio, todas prontas para a caçada de dia das bruxas.

Antes de entrar no escritório, com portas conectadas à lavanderia e à sala, ela pega um pacote de caixas de papelão e, com o auxílio da tesoura, abre a embalagem. Senta-se e desbloqueia o celular. A mensagem do marido, ainda não lida, está entre as notificações, bem como os inúmeros arquivos enviados pela arquiteta a respeito das reformas no apartamento. A mão reticente não busca as últimas atualizações; os dedos circulam a ligação recebida do laboratório na noite anterior.

Quando decide continuar o tour pela casa, a campainha toca. São crianças na empreitada de coletar o maior número possível de doces por andar. Ela os observa pelo olho mágico e gira a maçaneta, forçando um sorriso e um “boa noite, crianças”. Todas estendem os sacos, abóboras e caldeirões plásticos para o depósito da contribuição. Sandra cata algumas balas e bombons perdidos no armário da cozinha e as crianças agradecem em coro, ainda que no olhar a gratidão caia por terra.

Ela fecha a porta e é encorajada pelas lágrimas a ir até o banheiro. Não acende a luz e observa o brilho da lua se misturar aos feixes emitidos pelos postes lá fora, agregando reflexos no banheiro escuro. Sua figura é uma massa corpórea negra mesclada aos elementos. Abre a torneira, lava o rosto com água morna e respira fundo quando seca o rosto. Sai pela suíte, onde a cama está desfeita e o lençol segue jogado no canto direito. Dirige-se até ele e sente a perna tremer quando as mãos o tocam. Abraça-o e faz uma oração qualquer, de improviso, sussurrada. Já não busca controlar o choro.

Levanta-se mais uma vez e leva consigo a roupa de cama. Passa pelo corredor, acende a luz e aproveita a claridade para abrir a porta do quarto secundário. A chave está em seu bolso desde ontem: essa hora ia chegar. Destranca a barreira entre os sonhos pré-fabricados e a dor e entra no dormitório. Olha para o armário vintage, recheado de roupinhas, acessórios, brinquedos e porta-retratos vazios. O móbile pendente roça em sua bochecha enquanto Sandra aperta com firmeza a madeira do berço. Coberto por plástico, o colchão carrega o peso de mantas e cobertores de animais, plantas e personagens de contos de fadas.

Senta-se no meio do recinto. Estranha o silêncio, envolta pelo privilégio acústico proporcionado pela persiana, janela e porta fechadas. Naquele ritual, lembra-se das caixas de papelão, agora esquecidas pelo caminho, já nem sabe onde. Aborta a ideia de permanecer ali, ainda mais sem armas para empacotar aquele mundo recluso. Num rompante, anda cabisbaixa até o closet. Quando termina de abrir a porta, percebe estar revirando as roupas deixadas pelo marido. Sorri com os olhos marejados ante o próprio desatino. No lado certo, pega a fantasia de bruxa no cabideiro, fruto do Halloween do ano anterior, quando se vestiu para a festa temática da escola de inglês onde lecionava.

A bruxa passa pela porta de casa e seu olhar foca na placa-mantra colada em cima da soleira. Lê em voz alta:

- Nos sutras, é dito que quem quer que passe debaixo deste mantra uma única vez, purificará carmas negativos acumulados em milhares de vidas passadas.

Entra no elevador e admira a personagem refletida no espelho. Leva a mão à barriga, ainda guiada pelo instinto do que ficou. Vai até o mercadinho dentro do condomínio, compra doces de todos os tipos, coloca-os numa cesta de vime e sai pelas ruelas a presentear as crianças, finalmente agradecidas pela generosidade da bruxa do 304. Ao cruzar com a vizinha grávida, Sandra apenas se pergunta quantas vezes terá de passar pela porta.



***

Jeferson Haas é jornalista formado pela PUCRS e iniciou este ano o Curso Livre de Formação de Escritores na Metamorfose para resgatar a relação com as palavras. Recebeu o 2º lugar no 31º Concurso Internacional de Composições Epistolares para jovens (RS - 2002), passou por oficinas de Escrita Criativa, fez teatro e hoje atua como frila, com foco em redação e marketing. Participa do Curso Livre de Formação de Escritores da Editora Metamorfose.


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