Quando criança, eu escutava histórias, contadas pelos antigos, de uma velha anciã curandeira que habitava a floresta, morava numa frondosa figueira, conversava com as plantas e estava sempre rodeada pelos animais, amigos das noites frias e solitárias. Costumava vir algumas vezes até a pequena cidade onde eu morava para atender algum doente ou buscar suprimentos para si.
Em determinada época do ano, diziam escutar um canto acompanhado por batidas de um tambor que perpassava as árvores e chegava até eles como um grito desafiador; depois disto, passavam diversas luas sem vê-la, o que os deixava preocupados.
Estas histórias sempre me intrigaram e povoaram meu imaginário da infância até a vida adulta, desafiando minha curiosidade. Queria saber mais sobre aquela mulher, eram fascinantes as histórias que povoavam a sua existência naquela floresta.
Dentro de mim sabia que ela, a velha sábia xamã, fazia parte de mim e eu dela, e que cedo ou tarde estaríamos frente a frente.
Era outubro de 1970 e eu me encontrava em um momento de muitos desafios e escolhas a serem feitas. Havia sofrido decepções e começava a sentir o coração inquieto, a alma vagando e eu me refugiando cada vez mais nas minhas cavernas internas.
A sensação do vazio existencial se agigantava dentro de mim e, no silêncio da noite, chorava baixinho e sussurrava um pedido de ajuda.
Naquela noite, depois de meu canto-lamento, acabei dormindo, e no sonho via a anciã de cabelos longos e grisalhos, sentada aos pés de uma figueira a me estender a mão e a me chamar com o olhar negro e profundo.
No dia seguinte acordei com um forte desejo de sair da minha zona de conforto e ir ao encontro dela naquela cidade e floresta de minha infância onde em sonho, havia dito que me encontraria.
Era dia 30 de outubro, início da lua nova, véspera do Halloween. O feriado dos mortos, dia dois de novembro, cairia na segunda-feira, ótima oportunidade para eu viajar, já que voltaria a trabalhar só na terça-feira.
Reuni algumas poucas peças de roupas e itens de higiene pessoal, fechei a casa apressadamente e tomei a estrada rumo ao seu encontro.
Chegando lá, fui até uma pousada simples, porém acolhedora, onde fui recebida por uma bela jovem, Hecate, de longos cabelos dourados e belos olhos azuis turquesa, com longos cílios pretos. Sorriu de forma enigmática assim que me viu, e sem perguntas me alcançou a chave do quarto ao tempo que me dizia a muito me esperar. Serviu um chá de boas-vindas. Depois disto, tirei o resto do dia para caminhar e tentar me reconectar com as lembranças do passado e da minha infância.
Ao cair da tarde, quando o sol deu lugar à lua, voltei à pousada e lá encontrei Hecate tecendo uma linda veste branca. Ao me avistar, alegremente me comunicou que eu também deveria tecer a veste a ser usada no outro dia no ritual de shamhain.
Contou-me que esta é uma festa pagã para homenagear nossos ancestrais e falar com os mortos, ocorrendo sempre no dia 31 de outubro.
Sem me dar tempo para retrucar, me passou o tear, ordenando que eu começasse a tecer a minha veste, o meu destino. Me disse ainda que toda mulher deve ter seu próprio tear para poder tecer a sua teia-vida, sua própria realidade e história. Assim fazendo estará ativando as experiências de vida, tendo insights de seus poderes criativos e de sua capacidade de transformação e cura.
Animada, disse que a experiência que viveria me proporcionaria uma nova perspectiva que se integraria em mim, fazendo com que eu me desapegasse do que estava obsoleto, dando espaço para o novo ser incorporado, me tornando um ser mais complexo e enriquecido, co-autora da grande teia da vida humana.
Exausta, horas depois de começar a tecer minha túnica e após um dia cheio de emoções e novas experiências, dei uma última olhada orgulhosa para o que acabara de tecer e deitei com a certeza de uma boa noite de sono.
Pela manhã, era como se eu estivesse passando por um ritual de iniciação. Passei o dia reflexiva, minha alma me pedia que assim eu permanecesse.
Naquela noite, dia 31, junto com Hecate e vestindo nossas vestes brancas, seguimos um caminho iluminado por velas dentro de abóboras até uma clareira no meio da floresta, coberta pela névoa, onde mulheres igualmente vestidas de branco dançavam em volta de uma fogueira com salamandras dançantes, enquanto entoavam um cântico de invocação dos ancestrais, seguida de um cântico de saudação a Mãe Terra.
A cena era emocionante e senti ser ali o meu lugar. As mulheres assim que nos viram abriram a roda para nos unirmos a elas e, ao som do tambor, seguimos dançando e cantando pela noite adentro, aquecidas pelo calor da fogueira e pela egrégora formada pelas mulheres ali presentes ou não.
Envolvida pela névoa que torna visível o invisível, vi Hecate, a jovem de cabelos dourados, transformar-se, tornando visível sua outra face, a da velha anciã, curandeira e sábia relacionada ao outono e inverno, ao Samhain.
Ao reconhecê-la, sentei-me junto a ela na figueira e fui convidada a navegar na totalidade de minhas partes, afrontar a adversidade, rir dela, superar minhas perdas, descartar mágoas e ressentimento, deixar fluir o perdão e curar feridas do passado, me reconectando com minha ancestralidade, comigo mesma, integrando todas as minhas faces.
Quando a lua começou a se despedir de nós e saudar o sol, senti que era hora de dar seguimento à minha jornada.
Ela se despediu de mim dizendo: Adeus! Você não vai se lembrar, mas nos veremos em uma roda de mulheres no próximo 31 de outubro.
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Sandra Eliane Radin é mestre em Educação, possuiu Formação em Dinãmica dos Grupos e é uma estudiosa da Psicologia Analítica e da Mitologia Grega. Nasceu em Passo Fundo e reside em Porto Alegre. Participou do
Curso Livre de Formação de Escritores da Editora Metamorfose.
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