Biel olha a vitrine colorida, iluminada. Sempre gostou de ver seu rosto refletido nas bolas da árvore de Natal. Menino bobo, para de fazer caretas, a avó o repreendia. Ela sempre dava um jeito de lhe dar algum presente. Em breve será Natal. Lança um olhar comprido para as crianças com suas mães. Afasta-se da vitrine antes que o expulsem dali. Menino de rua constrange os clientes é o que sempre ouve.
Num ato de ousadia, Biel escreve para o Papai Noel dos Correios. Escolhe uma velha casa da Riachuelo, copia o endereço e com as poucas moedas que tem no bolso compra papel e envelope. Entre bolinhas de gude, um pedaço de barbante e um carrinho sem rodas ele encontra uma caneta na velha mochila inseparável. Numa letra trêmula de menino desacostumado a escrever pede uma bola. Nem precisa ser de couro. Capricha nas letras do nome, Gabriel Soares.
Descobre que a dona da casa chama-se Eunice e passa a cumprimentá-la. Cria coragem e conta a ela o que fez.
Eunice já tinha visto aquele menino magro dormindo na calçada. Aos poucos, ela descobre sua história. A morte da avó, o abandono do pai, a mãe drogada, os tios que o consideram um estorvo. A velha senhora olha aquele menino de olhos grandes e famintos e não tem coragem de lhe dizer que não basta escrever ao Papai Noel. Há regras, só alunos de instituições participam da campanha. Convida o menino para entrar na sua casa.
Meio sem graça, Biel acompanha Eunice. No porta-retratos em destaque na estante, a foto dos filhos dela ainda meninos. Um gato preto enrosca-se nas pernas de Biel que o acaricia. É uma casa silenciosa com móveis bem antigos. Cheiro de alfazema, almofadas coloridas. Eunice convida Biel para dormir no quartinho dos fundos.
Biel custa a dormir, desacostumado ao escuro e à cama e acorda antes de Eunice. Arruma a cama, abre a janela, vê a horta abandonada e resolve dar um jeito nela. Encontra um ancinho e um regador e se dirige aos canteiros quase sem forma.
Eunice não encontra Biel no quarto. A cama arrumada com capricho, as roupas que lhe dera dobradas sobre a cadeira e a mochila dependurada em um cabide a deixam mais tranquila. Vê o menino curvado limpando o canteiro das alfaces. Ele se levanta quando a vê. Ela sorri e lhe diz para se lavar. O café já está na mesa.
Biel entra meio sem graça na cozinha e senta na ponta da cadeira. Nem sabe por onde começar: café com leite, geleia, frutas e até um suco de laranja. Tem vontade de rir, de chorar, de abraçar dona Eunice. Fica quieto, não quer assustá-la.
Eunice convida Biel para morar com ela. Até o Natal terão muito que fazer. Ele precisa de roupas e de calçados. Juntos escolherão a tão desejada bola. Ela está cansada de ficar sozinha à espera dos filhos que nunca têm tempo para ela. Sabe que não aprovarão sua atitude. Que se danem! Será muito bom ter novamente uma criança em casa.
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Geni Oliveira é natural de Rio Grande. Professora aposentada, reside atualmente em Porto Alegre. Publicou contos em diversas antologias e é autora do livro individual Tempo de Viver, publicado em 2019. Para ela, escrever é uma forma de ressignificar a própria vida. Resgatar cores, perfumes, sabores e músicas. Histórias vividas ou inventadas. Participou do
Curso Livre de Formação de Escritores da Editora Metamorfose.
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