Para coisas que não têm nome
 



Contos

Para coisas que não têm nome

Adriana Machado


Sempre fui apaixonada pelos contos de fadas. Mergulhava naquelas histórias e me sentia personagem delas. Para mim, eram apenas princesas, reis, animais falantes e outros seres fantásticos a povoar os meus sonhos. Ilusões de uma cabecinha ainda incapaz de desvendar os horrores mascarados por trás daqueles relatos.

Mais tarde, percebi que aquelas histórias davam conta das ameaças a rondar as nossas portas, espreitar nossas janelas, assombrar praças e redondezas. Eram advertências sutis e eficientes. Depois delas, Chapeuzinho Vermelho saberia se defender. Mas esqueceram de avisar das atrocidades escondidas dentro de casa. O lobo voltou com a chave.

Até ontem, eu vivia nessa ignorância confortável de acreditar que a barbárie medieval havia ficado no passado, salvo algumas bizarrices de programas sensacionalistas. Até ontem.

Confesso não ter dado muita atenção quando fui abordada por ela, pois era mais uma das minhas pequenas amigas a me confiar segredos juvenis no corredor. Tinha lá seus quinze anos, quatorze, talvez. Havia terminado o intervalo e a menina precisava ir para a aula. Mas a insistência me fez convidá-la a entrar.

- Eu preciso te contar uma coisa - ela me disse com os olhos baixos. – É sério, de verdade.

- Tá bom, senta aí. Fala, o que houve - respondi e comecei a abrir gavetas procurando uma caneta, pois precisava terminar de preencher alguns documentos. Quando ergui a cabeça, encontrei aquela imagem aterrorizante.

Gelei, apesar do calor infernal daquela tarde. Não enxerguei a criança, mas uma criatura disforme, horrenda, salivando entre dentes pontudos e hálito fétido. Patas tomavam o lugar das mãos e o corpo se contorcia em movimentos lascivos, bufando e ondulando a pelve em descompasso.

Procurei em vão aqueles olhos verdes tão bonitos. Eram vermelhos agora. Me encaravam em desafio, céu e inferno fixos em mim. Busquei um traço de pureza, me agarrando na esperança de encontrar um vestígio de inocência naquele olhar e não encontrei. Tudo havia sido arrancado pela besta a invadir aquele corpo frágil. Mas a voz! Uma voz infantil me conduziu por labirintos tenebrosos.

Urros e sussurros infestaram a minha tarde e não sei quanto tempo durou aquele tormento. Para mim, alguns instantes, talvez algumas horas. Para ela, exatos cinco anos.


***

Formada em Letras e Pós-Graduada em Leitura: teoria e práticas, Adriana Maschmann Machado sempre foi uma apaixonada pelas palavras. Os livros, bons companheiros, despertaram o gosto não só pela leitura, mas também pela escrita. Estreou na literatura com uma participação na coletânea Diálogos (Editora Metamorfose) e em 2018 lançou seu primeiro livro individual, Alana Dupin - sigilo e eficiência (Editora Metamorfose). Participou do Curso Livre de Formação de Escritores da Editora Metamorfose.


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