Contos
Celebração
Vitor Barbosa
Não era possível ouvir os pensamentos. O champagne estourado foi a consagração da algazarra, o ponto máximo logo seguido por aplausos que lhe caíam tão bem quanto renda sob medida. Todos disputavam aos ombros o melhor ângulo capaz de eternizar o registro; a foto emoldurada a figurar ostensiva, grave, deslumbrando na prateleira todas as outras. Ao entorno de Fernando, os convidados se espremiam num furor típico daqueles que reverenciam um totem. O pico da família representado por ele significava, afinal, a conquista de todos: foi o primeiro, o menino estimado, a quem a nenhum antes a universidade tinha sorrido.
Mas, testemunhando agora seu sucesso realizado, percebo que um filho deveria ter mais compaixão com este tipo de coisa. Colocar-se na situação que lhe é inerente é sobretudo um ato de amor em relação aos pais. Pra que festa? Pra que risos dissimulados a agradecer a Deus por feitos mundanos que nada tem a ver com obras divinas? Até Ele se cansou de escutar preces tão vãs. Parece até jogar na nossa cara, Roberto, olha só. Através dos gestos, arranco seu verdadeiro propósito. Alheio, transparece no meio dos amigos que "no fim das contas eu consegui, vocês não".
Dizem que os filhos são os espelhos dos pais, mas acho que nunca faríamos isso com os nossos, nem sob a influência da ação gravada na mais profunda treva da consciência. Não. O que ensinamos foi a simplicidade peculiar dos humildes: aceite a reprimenda do pai, festeje diante da família sem muito arroubo; tempere os excessos, pois ofende; as pessoas não gostam. Se tu tivesse aqui, Roberto, concordaria.
E hoje ele corta em definitivo o cordão que outra vez nos formava como um. Caracteriza com violência o segundo rompimento: atravessa a ponte pela qual não pude sequer dar o primeiro passo. Veja, Roberto, eu teria ido à Medicina também. Talvez já fosse doutora, com algum consultório de renome na zona sul da cidade. Saído desse barracão que tu sempre chamou de casa. Largado você, ele, tudo. As tardes de manicure interrompidas, enfim, por aventuras mais vibrantes; uma outra paixão se avizinhando nos locais menos esperados. Tantas as aspirações que nem bem concebi por já nascerem natimortas: a conta no final do mês nunca fechava.
Tu foi e não deixou nada, Roberto. Só roupa e uns cigarros. Mas você tinha que me colocar Fernando na barriga não é? No meio do vestibular, dos livros desinteressantes a debruçar. Justo no meu momento? Depois os fatos derrotaram a gente que desestimulados e perdidos em corredores de supermercado sequer soubemos qual foi o fio condutor de todo o desencanto. A força para recobrar o vigor diluída no leite que brota do peito nas madrugadas insones. Nem os brigadeiros são suficientes para aplacar o amargor. E olha que são tantos... Pra que tudo isso, Fernando? Todo mundo grita, dá nem pra conversar. Balões que estouram, músicas a esgoelar. Ainda tem os salgadinhos. Meu Deus, lá se vão as nossas reservas; são tantas as dívidas... E ele não cansa de nos humilhar. Consegue ver? Todo sorridente a espalhar com os outros sua felicidade petulante. Se pudesse olhar agora, sentiria o asco que me embrulha o estômago a dobrar as costas, a agonia que me ventila o corpo a compartilhar com essas outras velhas o meu distanciamento. Elas também tem os ossos virados. Dá pra ver na cara estafada, na tez amarela.
Vai logo, Fernando! Sai de casa! Um dia sentirá o formigamento quebrando a postura, corroendo os joelhos a ponto de, inamovíveis, serem vencidos pelos arrependimentos da meia idade. Paralisado, quase calvo, só lhe restará a imagem jocosa do espelho: a juventude há em algum momento por se findar. Como é impossível não se comover, Roberto. Quem sabe, quando largado às traças e aos porões da vida, ele retorne ao colo materno; quem sabe sejamos aí, no fim, na miséria dos sonhos só imaginados, novamente um.
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Vitor Barbosa Ribeiro de Oliveira, natural de Manaus/AM, nasceu em 1993 e é formado em Direito na Universidade Federal do Estado do Amazonas. Atualmente, trabalha como assessor no Tribunal de Justiça do Estado.
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