Algodão-doce
 



Contos

Algodão-doce

Anton Roos


Do seu posto, ao lado de uma loja de cosméticos, Onofre observa um grupo de crianças brincando na imensa piscina de bolinhas instalada no primeiro andar do shopping. Imagina como seria se elas tivessem bigodes como o dele. Dezenas de meninos e meninas com bigodinhos, mergulhando em um mar azul, amarelo, verde e vermelho, escorregando pela língua do gigantesco jacaré inflável. Desde que começou a trabalhar no shopping, Onofre decidiu deixar o bigode crescer. Comprou óleo especial e um pente fino que raramente tira do bolso do colete. Quando soube, o filho perguntou se poderia ter um bigode também e se caso tivesse um, se isso faria com que ele parasse de fazer xixi na cama.

Sem que ninguém veja, Onofre alisa os pelos que crescem acima dos lábios. Relembra a resposta dada para a criança: “bigodes são mágicos”.

Onofre queria que o filho tivesse o mesmo nome dele e do avô, e não Pyérre, como quis a mãe, com ípsilon e acento agudo. O relacionamento dos dois durou menos de um ano. Depois da separação, a mãe de Pyérre juntou as escovas com um cara mais velho, professor de Educação Física. O professor deu um filhote de cachorro para Pyérre. O menino batizou o cãozinho de Bigode, disse para a mãe que era por causa do pai.

Onofre e Pyérre se veem uma vez ao mês. No horário do almoço, Onofre ligou para conferir se estava tudo certo para o fim de semana que eles passariam juntos.

— Ansioso, filho?

— Posso levar o Bigode, papai?

— A gente combinou que seria apenas você e eu, Pyérre.

— Mas, papai...

— Cachorros têm medo de jacaré, filho. Você quer que o Bigode comece a chorar quando ver o jacaré?

— Jacaré?

— Eu não te contei? Você vai brincar na maior piscina de bolinhas do mundo. Tem um jacaré gigante tomando conta dela. Você vai ver só! Fiz amizade com ele. O jacaré está doido para te conhecer.

Onofre não se conforma. Por que o cachorro não tem nome de cachorro? Tão mais fácil: Bili, Totó, Pingo, Tobby, Floquinho, Peludinho. Por que justo Bigode? Por que não Mustache, em inglês? Ia ser engraçado ver Pyérre chamando o cachorrinho assim: “Mustache, Mustache”.

Onofre está rindo de mostrar os dentes quando ouve um grito. Uma mãe chama pelo filho. Jura de pé junto que a criança está na piscina. “Meu filho está lá”, ela insiste.

No primeiro dia do brinquedo no shopping, Onofre perguntou para uma das funcionárias quantas bolinhas havia lá dentro. Ela disse que eram vinte mil. Cinco mil de cada cor. A mãe chama o filho pelo nome: Lucas. Uma moça que trabalha no brinquedo — a mesma que Onofre perguntou sobre a quantidade de bolinhas — pede que a mãe se acalme. Outras crianças começam a chamar pelo nome do menino perdido: “Lucas, Lucas”. Onofre se aproxima da lateral. Vê as garras do imenso jacaré onde as crianças sobem para pular na imensidão de bolinhas. Ele tinha se esquecido de mencionar esse detalhe para o filho. Uma operação improvisada para evacuar o brinquedo tem início.

A mãe de Lucas grita cada vez mais alto. O rádio pendurado na cintura de Onofre emite um bipe. Num dos cantos da piscina, um garotinho se levanta. Parece assustado. Começa a chorar. É Lucas. Onofre está a dois metros dele. A mãe do menino pede que ele venha até ela. Ele não se move. Onofre é quem está mais perto. Ele aponta para a mãe, diz que Lucas pode ir agora, que está tudo bem, que ele tem um filho mais ou menos da mesma idade e vai trazê-lo para brincar na piscina de bolinhas também. A criança soluça. A mãe e a funcionária se jogam nas bolinhas, parecem competir para ver quem chegará primeiro no menino. Onofre saca o rádio da cintura, aperta um botão: “Situação sob controle, câmbio”.

A funcionária chega primeiro. A mãe ainda afunda mais uma vez antes de pegar o filho nos braços. Onofre vê uma mancha úmida e circular na calça do menino. A funcionária faz sinal para a colega que ficou na entrada do brinquedo: com a mão, como se estivesse cortando o próprio pescoço, depois com o polegar virado para baixo.

— Se ele tivesse bigode isso não teria acontecido — diz Onofre.

— O quê? — questiona a funcionária.

— Se ele tivesse bigode...

— Não precisa repetir, eu entendi o que você quis dizer — interrompe a funcionária, fazendo cara de poucos amigos.

— Você não entendeu, é que eu e meu filho sempre brincamos que bigodes são mágicos e que se ele tivesse um, como o pai... — Onofre aponta para o próprio rosto, depois sorri.

— Bigodes mágicos? — retruca a moça. As pernas cobertas até os joelhos pelas bolinhas coloridas. — Você deve ser maluco, isso sim.

Ela começa a se afastar.

O tumulto logo cessa. Os curiosos dispersam, apontando para as vitrines, dirigindo-se até a praça de alimentação ou para o cinema. Em instantes, as funcionárias da piscina de bolinhas reorganizam a fila. Onofre não está louco. Ele viu a mancha. O menino, Lucas, fez xixi dentro da piscina de bolinhas e mesmo assim o brinquedo não será fechado para limpeza.

Uma das funcionárias avisa:

— Vamos reabrir em dois minutos. Por favor, façam fila.

No final do expediente, na calçada em frente ao shopping, Onofre vê um homem sentado numa banqueta de madeira. Ao lado, um cavalete de bambu improvisado com um pedaço de malha preta, mantém fixados vários desenhos e um papel riscado a lápis: tatuagens de hena, trinta reais. No chão, ocupando parte da calçada, um incenso e algumas pastas abertas com mais desenhos. Onofre se pergunta quantas tatuagens de hena o homem fez naquele dia e o que a mãe de Pyérre pensaria se ele tatuasse um bigode no filho.

De tanta ansiedade, Onofre tem dificuldades para dormir à noite.

O filho ainda está na cama quando o pai chega à casa da ex. Enquanto espera que a mãe arrume o menino, Onofre toma uma xícara de café e assiste desenho animado. Bigode puxa o cadarço do seu sapato. Onofre afasta o cãozinho. “Sai pra lá, Mustache”, sussurra. Quase uma hora mais tarde, ele e o filho deixam a casa. Pyérre está cabisbaixo. Onofre diz para o menino que, se ele prometer não contar tudo para a mãe, ele poderá escolher o que quiser para comer. O menino sorri.

Durante o trajeto, Onofre inventa conversas que teria tido com o jacaré inflável do shopping:

— Ele é bonzinho e deixa as crianças pularem em cima dele. Mesmo que sinta cócegas o jacaré está sempre com a boca aberta e é possível escorregar pela sua língua e cair no meio das bolinhas. Não é demais, filho?

— Vou ficar melecado, papai?

Onofre beija a testa do filho.

Ao chegarem ao shopping no início da tarde, o pai pergunta se Pyérre está preparado para o dia mais divertido de toda sua vida. A mão do menino sua. Ele faz sinal com a cabeça. Os dois avançam devagar. A porta automática abre e o sorriso que estava no rosto de Onofre some. O amplo hall de entrada está vazio. A piscina de bolinhas e o jacaré não estão mais lá. Onofre paralisa. O filho pergunta o que foi. Está ansioso. Os dois estão.

Onofre fecha os olhos. Solta da mão do filho. Respira fundo. Deita no piso vazio do shopping. Simula braçadas de um nadador experiente.

— Você não vai vir? — pergunta. O homem vira de costas, faz de conta que está quase submerso em meio às vinte mil bolinhas que até dias antes estavam ali. Levanta. Pega o filho nos braços e o atira para cima.— Vamos ver se o jacaré consegue te pegar — diz.

Do bolso da camisa, Onofre saca uma caneta. Risca a pele macia da criança, pouco acima da boca. O menino ri. Onofre faz cócegas no filho. Pyérre hesita. Parece aguardar algum sinal. Alguém tirar o véu que cobre seus olhos. Onofre arqueia as sobrancelhas, passa a mão pelo bigode. Mergulha outra vez. Deitados no piso vazio do shopping, os dois nadam na piscina de bolinhas que apenas eles conseguem ver. Os colegas de Onofre se aproximam. Seus rádios bipam sem parar. Em volta, um grupo de curiosos observa. Os colegas param, pedem que as pessoas se afastem. Fazem um cinturão de isolamento para que Onofre e o filho continuem a brincadeira. Onofre e Pyérre atiram bolinhas invisíveis um no outro. Onofre leva as mãos ao nariz:

— Você me acertou!

Em seguida, a criança corre para os braços de Onofre.

Passa os dedos sobre o próprio rosto e depois sobre os pelos do bigode do pai.— Eu sabia que eles eram mágicos — diz.

Onofre beija o filho. Pergunta se ele está com fome. Pyérre diz que sim. Onofre pergunta o que ele quer comer. O menino pensa por um instante antes de responder.

— Algodão-doce, papai.

De mãos dadas, os dois deixam o shopping, indiferentes a qualquer olhar de censura.

Conforme se afastam, sentem o cheiro de incenso aceso na calçada diminuindo até sumir por completo.

Pai e filho caminham até uma praça. Nela, uma mulher corre com fones no ouvido e óculos de sol, um adolescente empurra uma bicicleta com o pneu furado, um vira-lata cavouca um buraco na terra fofa. Sentado num banco, à sombra de uma árvore antiga, um senhor de boné está abraçado a um cano de PVC. Cochila.

Onofre e Pyérre estão com sorte. Ainda tem dois algodões-doces à venda.

***

Anton Ross é jornalista, pós-graduado em Jornalismo Digital pela PUCRS, publicou três livros de maneira independente. Em 2018, concluiu o curso de formação de escritores da Metamorfose e participou da coletânea "Contos de Mochila". Está trabalhando em uma narrativa longa ainda sem previsão de lançamento. Mora em Dois Irmãos/RS. Participou do Curso Livre de Formação de Escritores da Editora Metamorfose.

Conto publicado anteriormente no livro Banquete, da Editora Metamorfose.

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