Ele se equilibrava com um pé atrás do outro. Com os braços abertos, caminhava lento e sorria até que dobrou um dos joelhos ficando apenas um pé apoiado no poste deitado, que cruzava o rio de uma borda à outra. Caiu na água quando perdeu o equilíbrio. Quem mandou não ir de quatro, a irmã zombou. "Tá vendo seu merdinha, quis bancar o espertalhão, agora quero ver tu explicar pra mãe que molhou os livros." Ciro saiu da água roxo de raiva por ter caído, mas mais bravo ainda com a irmã que não parava de rir. "Oh, traste, vem cá, vem. Já, já te dou um corretivo! Nina saiu correndo, agora já nem tinha fôlego para rir, sabia que se o irmão a alcançasse seria o seu fim. Ele nunca se importava se a mãe ia ou não bater nele, afinal, ver Nina chorando e implorando que parasse de apertá-la e de cuspir em sua cara era um trunfo que jamais desprezaria. Mas Nina, desta vez se safou. Chegou em casa antes dele e para sua sorte a mãe já havia chegado do médico e o pai, estranhamente, estava no lar.
"Mas credo, menina, pra quê correr deste jeito? Parece que tá fugindo de alguém!" Falou a mãe, que batia os tapetes no tronco da árvore. "Nada, mãe, nada." "Cadê teu irmão?" Nina nem precisou responder, Ciro vinha que era um vento entrando no pátio. Travou de repente quando deu com a cara do pai sentando no portal da casa. "Mas seu peste, olha só o teu estado. O que que deu, hein? Atravessou o poste né, o safado? Pra que tem aquela ponte lá, o medonho? Prepara o teu lombo, tua mãe tá lá atrás batendo os tapetes na bunda da árvore. Pode preparar a tua! Tu sabe que quando ela bate os tapetes daquele jeito é porque tá nervosa." Seu Tonho levantou e foi atrás do moleque pra ver a gritaria da esposa com o piá. A irmã, já dentro de casa, só espiando. Ciro não falou nada, a mãe quando viu o filho todo ensopado, largou o tapete e tirou o chinelo do pé, mas não abriu a boca pra falar nadinha, só deu três lambadas no traseiro do menino, completamente muda. "É, tá nervosa mesmo." Pensou seu Tonho. Os olhos da irmã, apertadinhos para espiar pela fresta da casa, aguaram. "A mãe é muito brava!" Falou pra si mesma.
Ciro colocou os livros no sol para secarem. A mãe sem nada dizer o fulminou com os olhos e apontou a enxada. Nem precisava explicar, o garoto já estava habituado, cada vez que fazia algo errado tinha que carpir o pátio até não haver um fiapo de grama em pé. Ciro suspirava. O sol de meio dia lhe deixava esgotado, o suor lhe corria pela fronte, a fome já estava apertando. Lá dentro de casa, a mãe, o pai e irmã já estavam sentados à mesa almoçando. "Mãe, deixa ele vir comer, depois ele acaba." "Para de ser mole, rapariga! Se tu pensa que criar filho é fácil, pode tirar o teu cavalinho da chuva. E vai aprendendo, porque homem de bem se cria é na vara e no trabalho." O pai estava muito ocupado mastigando, de vez em quando tomava um gole de água e limpava a boca na manga da camisa, os olhos sempre enfiados no prato. "Mãe, a professora disse que ninguém pode bater em criança." A mãe largou o garfo e afastou o peito da mesa escorando as costas no espaldar da cadeira, olhou para a menina e deu profundo suspiro. "Já pro quarto!" Nina deu uma última garfada e saiu.
Ela não estava para conversa, a consulta com o médico não tinha sido agradável, nem sabia como iria contar da tal doença, ia ter que parar de fazer as faxinas. Empurrou o prato pra longe, olhou para o Tonho, sentiu pena. Ele parecia que sabia que a coisa não era boa, por isso aquele silêncio todo. E para completar o dia, o marido também tava desolado, tinha levado um pé na bunda do patrão. Dona Celita empurrou o prato pro meio da mesa, ergueu-se de supetão, pegou a jarra de água e encheu o copo. Bebeu num só gole e o largou com tanta força na mesa que o quebrou. O marido ergueu os olhos, ficaram se mirando em silêncio, ele sabia, ela sabia, a dor era a mesma, aquelas crianças não podiam ficar desassistidas. Ela foi a primeira a desviar o olhar, caminhou em direção ao armário, o abriu. Lá dentro, um saco de arroz, outro de feijão e o café quase acabando. Não era possível que o patrão, além de dispensar Tonho, iria atrasar o que devia. O olhar do marido se fixou dentro do armário, ele largou o talher, a visão ficou embaçada, virou-se para a janela e chamou Ciro. O garoto veio correndo. "Senta ai e come, mas antes vai te lavar." falou o pai. Enquanto Ciro comia, a mãe lavava algumas louças na pia. "Nina!" Gritou o pai. "Vem ajudar tua mãe." Nina apareceu na cozinha. E, enquanto pegava o pano para secar a louça, olhou para o irmão que comia de cabeça baixa. Quando o menino acabou de comer o pai pediu que todos se sentassem à mesa. A mulher continuou a lavar a louça. "Tu também, minha Nega, senta aqui." A mulher secou as mãos no avental e sentou. O homem olhou para cada um deles. Um silêncio de angustiar. Os filhos se entreolharam, sabiam que coisa boa não era, o pai não deveria estar em casa àquela hora e sim no trabalho. A garganta de Tonho deu nó, ele esfregou as mãos no rosto e começou a falar em voz tremida, nervosa. "A gente vai precisar muito da ajuda de vocês, vai precisar de muita compreensão... eu... eu perdi o emprego... a Nega... a mãe, a mãe também não tem boa notícia pra falar. Fala, Nega, fala o que tá te deixando arriada."
Houve um grande vazio de sons naquele momento, nem os passarinhos, lá fora, cantavam. Nina torcia a bainha do vestido, Ciro roia a unha do polegar e Tonho já umedecia os olhos. A mãe falou e todos correram a abraçá-la num volume fechado de braços e encharcado de lágrimas. Não tinha mais falas, apenas soluços.
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Texto de
Marlene Netto, gaúcha, artesã, contadora de história, tem paixão por escrever. Iniciou como autora em 2018 participando do livro de contos "TRANSGRESSÕES".
Revisão e leitura crítica de
Mitcheia Guma.