Memória do chão quente
 



Contos

Memória do chão quente

Cibele Fahmy


Francisco entrou em casa às seis e meia da manhã e Lena já estava na cozinha, enfiando a marmita quente na bolsa enquanto repetia o mesmo de todo dia; que Dona Ester ia danar se ela atrasasse. O cheiro do cômodo misturava macaxeira cozida e café fresco, e a mesa branca de fórmica parecia adornada com os nacos de pão sovado com margarina no prato esmaltado, bem ao lado de dois copos esfumaçados de café com leite. Ela ordenou que o marido não tardasse a tirar Sarinha e João da cama, e já do lado de fora da porta gritou que senhor Pinati passaria às duas para receber o aluguel.

Ele concordou com tudo até ouvir o estalar da porta batendo. Caminhou devagar em direção ao quarto abafado, e bastou a luz triscar para os dois pularem da cama. Vestiram as roupas separadas em cima da cômoda e, já na cozinha, foram enfiando tascas do pão na boca, entornando logo atrás pequenos goles da bebida já não tão quente. O pai pensou em rezingar quando João virou o resto do copo no ralo da pia, mas hoje fez vista grossa. Era canseira até pra clamar, com a cabeça pesando mais que ressaca de tiquira. Dezoito anos rodando turno e andava cada dia mais frouxo. Para acabar, essa noite cochilou na guarita e sonhou com o dia calorento da infância distante. Era a chegada do caminhão pipa.

Sonho curto, daqueles que deixa o cabra cismado de como que a cabeça dá conta de resgatar. Betânia era pirralhinha e brincava na cozinha com a boneca de sabugo de milho. O que a caçula tinha de franzina tinha de caprichosa; tirava a palha do sabugo seco com jeito e fazia o cabelinho. Os olhos e a boca ela pintava com tinta de coloral, e as roupinhas dos retalhos que encontrava pela casa cabiam certinho no corpo de espiga. Ela beirava o fogão a lenha quando mainha danou a gritar para o filho mais velho que já era hora do caminhão.

Era mesmo. Foi o berro findar e o ruído grosso do motor atravessou a estradinha para fazer vibrar os cipós da tapera. Da janela, Francisco viu o veículo deixando rápido o piso duro pra trás, parecia desgovernado. Lançou então os cambitos para cima e para baixo e, abraçado à lata vazia, passou a ouvir o som seco das passadas de Juca e Amaro logo atrás. No rumo da casa de seu Cícero avistaram a fila, que mais parecia um vagão de locomotiva, e lá frearam as pernas para se ajuntar ao imenso cordão de gente.

Tinha mulher prenha, menino moço, homem formado, cabra e um tanto de cachorro magro. Gente que clamava pela família que era maior, pela casa que tinha mais criança pequena. Um povo que alternava os olhares entre o fim da linha de gente e o sol a pino no céu grande sem qualquer sinal de nuvem. O tempo ali parecia não querer ir embora, mesmo para as crianças alegradas pelas piadas de algum traquino ou pelos chutes curtos na bola improvisada surgindo no meio da multidão.

A longa espera do sonho curto e Francisco viu a satisfação calada no rosto dos três cazuzas. Era a vez deles. As vistas estavam enfeitiçadas pelo movimento da água entornada na lata, clarinha, parecia água de telhado. Foi a vasilhame encher e eles se apartaram da fileira para dar chance a sorte do outro. Tomaram o rumo de casa e o suor passou a pingar da pele enquanto alternavam o arrastar da lata com as incontáveis paradas para o braço resfolegar.

Ele acordou com o toc-toc do guarda noturno no vidro fumê da guarita. Um tranco brusco no pescoço logo antes de botar a lata em cima do fogão a lenha e o cheiro velho da cabine apertada se apresentou. Abriu os olhos antes de ver sua mainha.

A noite virou, o sol foi chegando acanhado e até agora a fila comprida segue viva na cabeça dele. Já lembrou de Betânia chorando que queria ir também, do riso alto de Juca quando Amaro gritou pela sola ardida. Do barulho do vento que levantava o poeirão e fazia tossir. Do dia de seu clamor à mainha que não queria mais. Culpou o peso demasiado e a pouca força dos braços, mas ele tinha mesmo era vergonha da água que caía no chão seco quando os braços não davam conta. Ela primeiro se avexou, e depois puxou o varapau para o seu colo franzino. Disse que a lata pesava cada vez mais pra ela, e garantiu que ia ficar mais maneira para ele.

Mainha tinha razão. Os braços dele se arrobustaram, a sola do pé curtiu e o miúdo virou cabra cuidadoso, desses que não deixava entornar uma gotinha. Até hoje, que tem uma porção de torneira em casa, segue zeloso como no dia em que tudo era diferente. Tem satisfação com a vida. Só carece mesmo é esquecer o som das rodas brutas avançando a terra batida.

 

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