Contos
Incompatibilidade de gênios
José Vecchi de Carvalho
Inspirado na música de João Bosco e Aldir Blanc, porém com o ponto de vista da mulher
Doutor, não posso admitir uma coisa dessas. Eu sei que de vez em quando pego pesado, mas ninguém é de ferro. Ele passou dos limites. Acha que é um rapazinho ainda, tirando onda com uma tal de Tininha, uma piriguete, o senhor sabe, dessas que todo mundo põe a mão.
A desculpa dele é sempre a mesma. Jogando sinuca, tomando umas com os amigos pra relaxar. Mentira, pensa que me engana! Nunca vi isso, já é um relaxado, não para em emprego nenhum. Agora fala que tô dando gelo nele, bobagem, ele é que chega tarde, bêbado, cai na cama e apaga. Tem vez que fica no sofá de tão ruim. Fiz de tudo, reza, benzição, mandinga, tudo que o senhor imagina.
Ele não era assim, não. Sempre foi boa pessoa, quieto em casa, mas não sei o que deu na cabeça, de uns tempos pra cá endoidou, uns amigos esquisitos, sinuca todo dia, uma bebeção danada, farra e mais farra, nem vê as crianças direito, quem aguenta?
Além do mais, uma implicância com a minha mãe, coitada, sozinha no mundo, velhinha, doente, remédio com hora certa, um monte, médico e farmácia pra lá e pra cá, não sabe lê, alguém tem que cuidar. Sou filha, não posso deixar ela assim. Levei pra casa e aluguei o barraco dela, sabe como é, uma graninha a mais, essa carestia! Aí ele pega a falar que eu não podia fazer isso, não tem mais liberdade, espaço, pisa duro pela casa, grita, as crianças choram. Passa pela geladeira, pega minhas economias debaixo do pinguim, uns trocados, e sai resmungando. Aí, doutor, só tarde da noite, daquele jeito. Se falo, tem briga, manda eu calar a boca. Joga na minha cara um monte de bobagens, inventa até amante pra mim, vê se pode, eu, uma bobona. Ele fala da pobre da minha mãe, tudo culpa dela. Agora embirrou, disse que eu tenho que escolher: ele ou ela. O que faço, doutor? Acho que vou largar mesmo, mas aí, como fico? Preciso de ajuda. Vou ter pensão? E as crianças? Morrer de fome? Me diz, doutor. Crescer sem pai, ouvir zoeira de colegas na escola já é ruim, mas vá lá, dá-se um jeito, e a gente acaba acostumando com tudo, né? O que não posso fazer é deixar minha mãe, doutor. Eu me viro, dou um jeito, mas ela tá pior que uma criança, depende de mim pra tudo.
Agora, se ele tá querendo liberdade, tem que assumir a obrigação. Três filhos, doutor, ele pensa que é fácil, que é só pôr no mundo. E a comida? E a roupa? E as contas todo mês? Os três na escola, material, uniforme. Vê aí, doutor, não dá mole pra ele, não. Liberdade? Espaço? Tudo bem, paga por isso. Paga e some da minha frente! Até levar um chute da outra e se arrepender um dia, se Deus quiser!
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José Vecchi de Carvalho, mineiro de Cataguases, formado em Letras pela Universidade Federal de Viçosa. Tem contos publicados na e-zine literária Chicos, em coletâneas de concursos literários e na coletânea Metamorfoses do Amor, editora Metamorfose. Participou das oficinas Criação Literária e Oficina do Livro promovidas pela Metamorfose Cursos Online e Escritor profissional promovida pelo Carreira Literária. Publicou A casa da rua Alferes e outras crônicas (autopublicação, coautoria, 2006); e Duas cruzes (contos, editora Kazuá, SP, 2018). Participou da FLIP 2018 (Mesa Onde mais houver poesia, Casa Philos) e do 3º Encontro Literário #Caiu na rede é cultura, Céu Caminho do Mar, São Paulo, outubro 2018.
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