Contos
Tragédia em quatro atos
Michele Tamusiunas
I
João baixou o vidro para olhar melhor o movimento. Dia lindo, ensolarado. Aquele calorzinho fresco de início de primavera. A entrevista tinha sido um sucesso. Na rádio começava a tocar Love Vigilantes, do New Order. Aumentou o volume ao máximo que o aparelho permitiu.
Os climas estavam em perfeita harmonia, ele pensava. O temporal e o espiritual. A vaga estava garantida. Iria começar no novo emprego na próxima segunda. Dali a três meses estaria formado e esse trabalho veio no momento certo. A agência tinha um nome forte no mercado e a possibilidade de ascensão era fato. Coisas da primavera, ele sentia, enquanto ouvia a música. Novo ciclo, nova vida.
E mais, poderia trabalhar períodos em home office o que lhe permitiria desbravar o mundo. China, Tailândia, Índia. O mundo seria dele.
A música cada vez mais alta. Ele precisava compartilhar essa felicidade no grupo.
Foram só três segundos de digitação. O suficiente para não ver que o sinal tinha fechado.
II
- Ih, nem vem! Vai ser gremista igual ao pai dizia Fernando com aquele sorriso simpático, mas certo de que o filho seguiria sua paixão.
- Negativo! retrucava Sônia. Quando ele crescer, vai decidir.
Sônia nem gostava de futebol, mas se divertia provocando o marido. Era colorada só por dizer. Sequer sabia o nome do técnico.
Eles eram companheiros e parceiros. Se apoiavam em tudo. E superaram juntos a dificuldade de Sônia engravidar. Foi só na terceira tentativa de inseminação que o embrião vingou.
Naquele dia ensolarado de primavera estavam vindo da última ultrassonografia. Em duas semanas seriam pais. Um sonho realizado à custa de muitas abdicações. Uma felicidade que não cabia naquele carro.
- Amor, o bebê está apertando muito a minha bexiga. Muito mesmo ela colocou uma mão embaixo da barriga e outra entre as pernas. Preciso urinar urgentemente.
- Estamos quase chegando, querida. Aguenta só mais um pouquinho. Só mais essa sinaleira e chegamos. Tudo bem?
Ela balançou a cabeça e já foi soltando o cinto.
Ele acelerou aproveitando que o sinal recém tinha aberto.
III
Juliana nunca pensou que um dia pudesse ser maratonista.
De saúde frágil desde tenra idade, vivia cheia de cuidados. Passou a infância dividida entre escola, casa e hospital. Com uma cardiopatia congênita, precisou ser transplantada antes da adolescência.
Ao ingressar na fase adulta, descobriu-se com uma doença autoimune que lhe causava dores e alucinações. Sem autoestima, não tinha amigos, não tinha vida. Precisava correr de si. E foi então que começou a correr de verdade. Não para ser campeã para os outros, mas para superar a si própria.
Primeiro foi a caminhada rápida, depois o trote. Quanto mais devagar, mais longe. Então veio o grupo de corrida e, junto, vieram os amigos. Vieram também os sorrisos, os desafios e as distâncias cada vez mais longas em menos tempo.
Aquele dia de sol de primavera era o último treino antes da competição. E sorriu satisfeita ao verificar o cronômetro.
Ao olhar para frente calculou que ainda dava tempo de atravessar o cruzamento.
IV
Carlos vinha perdido em pensamentos. Eram tantas coisas para resolver, ainda mais que na semana seguinte estaria ausente da cidade. Mas tudo bem, tudo encaminhado. Pensava no encontro de amanhã com amigos. Ia ser a festa. Mulheres, bebidas. Diversão certa.
Estava prestes a cruzar a rua, quando, de repente, lembrou.
- Meu Deus! A loja já vai fechar! e no milésimo de segundo que tirou o pé da rua e voltou para a calçada, ouviu atrás de si o estrondo.
Ao se virar, deparou-se com o corpo de uma jovem estendido no chão, uma mulher jogada para fora do carro e um rapaz preso em ferragens retorcidas, num veículo cujo som era ensurdecedor.
Mas não dava tempo de ficar ali. Ele precisava ir à loja.
As alianças estavam prontas. E depois de amanhã seria o grande dia.
***
Michele Tamusiunas é formada em Letras pelo Centro Universitário Lasalle e pós-graduada em Educação Infantil pela UFRGS. Durante doze anos foi professora de Língua Portuguesa na rede estadual de ensino do RS, sendo três concomitantes à rede municipal de Canoas. Desde 2012, leciona Língua Portuguesa na rede municipal de Porto Alegre.
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