A chuva tem esse dom de me pegar pelo caminho. Só dobrara duas esquinas, quando o céu liquefez seu cinza claro em gotas espessas e frias. Decidi voltar para casa. Talvez me atrasasse, arriscando encontrar o metrô em piores condições do que os pacientes à minha espera, vomitando pernas, braços e corpos inteiros porta afora. Mas voltaria para casa. Precisava abrigar-me com a prudência, quiçá tardia,ansiada por minha mãe desde que o frio de São Paulo nos deu boas vindas. Chegamos num inverno, eu, ela e meu pai. Alguns invernos depois, ela partiria deixando-nos sozinhos e envoltos em estranha frieza.
Casaco em punho, guarda-chuva nas mãos e no bolso, o celular a vibrar. Melhor não atender. Passagem de plantão é o palco cotidiano de um drama encenado por personagens exaustos e impacientes. O telefone fixo, entretanto, começara a tocar. Estranho, em dias modernos parece programado no modo silencioso. Ignoro, tomado pela angústia dos culpados, e saio às pressas. À espera do elevador,a vibração do celular passa a incomodar-me mais do que o discurso queixoso prestes a ouvir. Atendo. Era da Casa de Repouso. Meu pai desaparecera.
Há dois anos precisei interná-lo. Ele já não sabia quem eu era, já não sabia quem ele próprio era. Na verdade, desde a morte da minha mãe, pouco soubemos de nós. O Alzheimer começara logo após sua aposentadoria. No início sofrera a cada palavra fugidia, arredia às suas intenções, irremediavelmente indomada. Para um professor e leitor voraz, a morte do sentido era o sentido da sua morte. Para onde teria ido a sua memória, em que lugar haveria de ter se refugiado?
As lembranças da minha infância têm seu cheiro, suas mãos e sua voz. As lembranças da minha infância têm o olhar da minha mãe sobre nós. A terra molhada, a chuva benfazeja, a felicidade da manga comida no pé e o meu pai fincado no chão, qual tronco robusto, a impedir-me a queda. O meu pai a ensinar lições, o meu pai a corrigir lições, o meu pai a orgulhar-me. Líamos juntos contos mágicos sobre a lua, as histórias de sacis e os poemas de Manoel de Barros, que ele dizia ser igual a nós, um plantador de palavras.
Ao chegar no abrigo, já o tinham encontrado. Estava encharcado, com tanta água sobre a face que as lágrimas brincavam de ser chuva, mas ele, de fato, chorava. Parecia um menino assustado, ainda perdido. Abracei meu pai, sem nada dizer. Levaram-no. Na rua, chamei um táxi, disse-lhe meu destino e olhei para a chuva, sentindo os olhos da minha mãe sobre mim. Comprei duas passagens para aquela mesma noite.