Depois que o homem começou a colonizar outros planetas, muita coisa mudou aqui na Terra. Principalmente no que diz respeito ao crescimento da população, reduzindo consideravelmente a densidade populacional existente e, consequentemente,o consumo desenfreado dos recursos naturais do planeta, tais como água, alimentos, combustíveis fósseis e madeira.
A reprodução artificial do ambiente terrestre nos três planetas agora habitados por seres humanos, assim como a viabilização da transformação do enxofre em combustível, viabilizaram que as grandes potências da Terra em 2030 iniciassem os seus processos migratórios, cada qual para o seu planeta conquistado.
Os Estados Unidos e a Europa Unida, recentemente unificada, não estavam tendo dificuldades neste princípio de transferência de voluntários para os seus novos planetas. As famílias inscritas no programa eram muitas, a maioria vivia na mais baixa faixa de renda de seus países, e todas recebiam a garantia de que na nova casa haveria um espelhamento do regramento social dos respectivos países na Terra.
Já o mesmo não ocorria com a China. O país criou um regramento próprio para a vida dos seus voluntários, e a incerteza da vida extraterrestre sob novas regras sociais amedrontava os corajosos chineses que se interessavam pelo programa.
Foi neste clima que Liu Cheng alistou a si, à sua mulher e ao seu filho para a migração definitiva para Marte. O medo sempre permeou o pensamento do chinês, mas a miséria com que eles viviam no interior rural o fez tomar a decisão de desistir do quase nada que tinham para tentar uma nova vida no espaço.
A decisão foi comunicada à esposa, que prontamente a acolheu. Muito embora Liu não lhe tenha questionado a respeito, por não se tratar de assunto no qual a mulher devesse se meter, ela concordava que nenhuma vida em Marte poderia ser pior do que a sua pobreza.
A longa viagem de seis meses de duração estava transcorrendo tranquilamente, pois o governo chinês providenciara a maior segurança e conforto no aerotransporte para as quinhentas famílias que dariam início ao programa.
No final do quarto mês de viagem, após terminarem o jantar, a mulher de Liu chamou-lhe num canto e o avisou que tinha certeza que estava grávida. Já havia três meses que ela não menstruava, e sua barriga de gestante já começava a tomar forma. Havia desespero em sua voz, tendo em vista que, antes de embarcarem, haviam sido rigorosamente instruídos de que as famílias não poderiam ter mais de três elementos, e que o nascimento de uma eventual criança que desrespeitasse esse limite faria com que o governo obrigasse os pais a escolher qual dos filhos sobreviveria. Esta imposição, explicaram os governantes, tinha por objetivo evitar que a colônia espacial sofresse com os mesmos problemas que a China há muitos anos vinha sofrendo na Terra, de sorte que não haveria exceção a esta regra.
Liu simplesmente silenciou. Seu pânico ficou velado em sua cara fechada. Sabia que seria o responsável pela decisão final, e que esta, sem dúvida, seria a mais difícil e dolorida escolha de sua vida. Virou-se para caminhar sozinho sem nada dizer a sua esposa, que, após sua saída, derreteu-se em um choro surdo.
Somente se reencontraram na hora de dormir. Ao deitar em uma das camas dotreliche da família, Liu beijou seu filho, que já se encontrava adormecido, e simplesmente disse a sua esposa que resolveria aquela situação. Ambos tomaram suas pílulas de adormecimento forçado e se deitaram.
Ao acordar, a esposa levantou de sua cama e estarreceu:o marido de fato havia resolvido a situação rasgando sua própria garganta com a faca do jantar.