A conversa
 



Dialogos

A conversa

Muriel Felten Pinheiro




Passava das 19h quando a maçaneta se mexeu. Eu, que havia dedicado as últimas três horas da minha vida para aguardar e evitar aquele momento, sentia a ansiedade me consumir. Estava sentada bem de frente para a porta, como que para obrigá-lo a me ver, mas naquele momento tudo que desejava era ser invisível.
- O jantar está pronto? – ele perguntou, deixando seu casaco sobre a poltrona da esquerda e largando as chaves na mesa de vidro ao lado. Não levantei a cabeça nem por um segundo, mas ouvi aquele som familiar que me dizia todos os dias que tudo estava em seu lugar e que não havia espaço para mudanças ou surpresas.
- Pai, eu preciso conversar com o senhor.– sentia meus pés formigarem, como se o tapete persa pegasse fogo, e aquele papel que tinha em mãos adquiriu instantaneamente o peso de uma tonelada.
- Conversaremos mais tarde, depois do jantar. Agora tenho que preparar um memorando para entregar aos acionistas na reunião de amanhã. Aqueles sanguessugas estão querendo me comer por uma perna. Acredita que estão exigindo aumento na participação dos lucros de novo? Assim acabaremos falindo. Maldita hora em que abri meu capital. - dito isso, sentou-se na poltrona da direita e acendeu o seu charuto cubano vindo em lote especial, enquanto Berenice trazia seu habitual uísque duplo sem gelo. - Mas me conte, como estava a aula de francês? Sua mãe se orgulharia de te ver estudando um idioma tão chique. Elegante como era, devia ela mesmo ter estudado enquanto podia. Parece mentira, já faz mais de 10 anos...
- Pai, já conversamos sobre fumar dentro de casa...
- Não incomoda, menina! Desde quando isso é um problema? Se você tivesse que lidar com tantos problemas quanto eu, iria até me pedir um. E agora vá ajudar a Berenice a preparar o jantar enquanto eu penso nesse bendito memorando – recostou a poltrona e tirou as botinas, em um movimento sincronizado característico.
- Hoje não vou poder, pai. E creio que por um bom tempo. E sobre fumar, nem que eu quisesse, seria impossível.
- O quêêê? Fala direito, criatura, não estou entendendo nada.
Agora minhas bochechas formigavam também, mal conseguia pronunciar as palavras. As baforadas de cigarro intercaladas com o balanço da poltrona faziam a cena tomar forma de círculo, e o odor das botinas encontrando o cheiro de camarão cozido que vinha da cozinha estava provocando espasmos em meu estômago. Eu não tinha muito tempo.
- Estou dizendo que nossa conversa não pode esperar.O que eu tenho pra falar é urgente. Sei que tu não vais me perdoar. Realmente fui irresponsável, inconsequente, mas agora preciso do teu apoio. Desde que mamãe se foi somos só nós dois, e, mesmo com toda falta que ela me faz, aprendi a te ter como minha referência. Preciso do teu apoio e do teu perdão, pai.
- Ahh, eu não acredito! Então era por isso que estava me esperando com essa cara de quem fez merda. E esse papel na mão, como eu não percebi! Está de castigo por uma semana, e pode deixar o boletim aqui na mesa que depois eu vou ver em quais matérias tu foste reprovada. Agora já pra cima!
Meu pai levantou e andava de um lado para o outro, fumando seu charuto compulsivamente. Eu permaneci imóvel, pois se fizesse qualquer movimento cairia dura, ali mesmo. Súbito, vi aquela figura enorme se virar para mim com cólera nos olhos.
- O que está fazendo aí ainda? Já mandei subir, estás de castigo!
O seu hálito, direto em minha direção, foi o tiro de misericórdia. Não tive forçar para segurar, meu estômago saltou involuntariamente no tapete persa e nas botinas de meu pai, que, em pânico, gritou:
- Berenice, corre aqui!

 

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