Ainda estava escuro quando Joana se levantou, mas já fazia um calor insuportável. Foi colocando o uniforme com pressa: calça, camisa, botina, colete. Prendeu o cabelo, mas não colocou o quepe, guardou na mochila. Usar o uniforme assim completo a deixava com cara de homem, não gostava.
Enquanto colocava a roupa de volta na mochila, pensava na missão do dia. Tinha boato de protestos na cidade e os trens estavam fazendo operação padrão, um prenuncio de greve e (mais) tumulto. Depois de mais de quinze anos como segurança e cinco como encarregada da companhia de trens, ouvia os sons das estações dia e noite. Os apitos, a gritaria, o freio. Era quase como se aquele barulho todo quisesse dizer alguma coisa, não deixava de ouvir nem enquanto dormia.
Com o tempo começou a compreender os sinais. Sons de batuque queriam dizer que era dia de jogo e ela tinha que direcionar o pessoal para evitar as brigas. Uma freada mais brusca era alguém que tinha caído na linha (ou se jogado, nunca se sabe), e a prioridade era dispersar os curiosos. Ficou tão boa em interpretar os sons que se dizia por aí que ela sabia o que ia acontecer. Na rádio-peão o boato é que Joana era a médium da CPTM.
Joana saiu, não beijou ninguém, não disse até logo, nada. Ficou só o gato miando pra trás, sozinho. Sua intuição estava certa. Tiros, bombas, gente gritando. Os grevistas se encontraram com os estudantes perto de uma estação e começou o protesto, bem na hora que todo mundo estava querendo ir para o trabalho. Era velho desmaiando, gente apanhando, batendo e Joana lá, organizando o seu pessoal para tentar diminuir o quebra-quebra.
De repente um homem entrou com um pedaço de pau na estação e começou a quebrar tudo. Joana, destemida, se colocou entre o trem e o homem. Ele retrocedeu. Um repórter filmava tudo e Joana foi a heroína do jornal do meio-dia. Mais tarde, até recebeu uma ligação do governador, parabenizando-a por conter o vandalismo sem usar da violência. Era um exemplo, disse ele, da política pacifista adotada pelo estado, do excelente treinamento dos funcionários.
Joana foi embora feliz, vitoriosa. Antes, conversou com o seu pessoal, agradeceu a todos e dispensou o turno. Trocou de roupa, colocou uma saia fresquinha e decidiu passar na igreja para agradecer por não ter morrido naquele dia. Entrou no ônibus e dormiu, encostada na janela.
Estava tão cansada que não ouviu quando dois meninos, com seus 13 anos, entraram no ônibus e mandaram todo mundo descer, jogando gasolina por todos os lados. Quando viram o quepe caindo da mochila, saíram gritando É polícia! É polícia!. Joana acordou no meio das chamas, sem tempo de se defender. Abriu os olhos e a última coisa que viu foi a multidão gritando do lado de fora.