Uma doce e poética narrativa do moçambicano Noordyne Mussa, participante de nossa oficina. Neologismos como "se sozinhava" e um tom de realismo mágico representam bem a estética da literatura luso-africana, que tem Mia Couto como seu expoente maior.
Um dia, ela foi vista na varanda dos seus aposentos sem burca. O expressivo rosto de olhos verdes denunciava sua tristeza. Abiba ouvia de longe a felicidade das primas já casadas, mas ela ainda se sozinhava. Essa exclusão tingia o espelho da sua alma com a ânsia da esperança.
Um casal vivia numa remota aldeia e não se misturavam com outras raças. E com o problema da guerra civil, ficou complicado viajar e estabelecer contactos para prepectuarem a sua raça. Quando a guerra acabou, a esperança renasceu nos corações da família.
O casal tinha uma filha Abiba. Ela não ia à escola porque todos, incluido os professores viviam nas palhotas de barro e capim. E a escola era debaixo duma árvore. Os alunos, sentados na areia cheia de matequenhas . Abiba cresceu gradeada dentro de casa aprendendo o comércio da família. A menina tinha vestes de variadas cores, excepto a preta, embora o seu cabelo fosse preto. Quando ela via a cor preta, imaginava o sujo de um cadáver e se sentia nauseada. A menina crescia, a curiosidade nela também e os pais ficavam cada vez mais impossibilitados de correspondê-la. Ela não entendia a escuridão da noite e até dormia acordada como o coelho, porque o sono também era escuro. E a fome era tanta
Nem vacas. Nem gazelas. Os animais, sumidos com a guerrilha. Um dia, a menina perguntou à sua mãe, porque não comiam o cão:
- A carne de cão é preta.
Abdul não quis saber mais. Ultimamente, a sua filha Abiba andava esquisita já falava de amor e paixão. Aquelas palavras eram proibidas para raparigas da sua idade. Várias vezes, Abiba fora avistada com um rapaz albino, o único que para ela era branco assim como a noite e o dia. E a mãe, assustada, indagou-lhe onde ela aprendera a palavra loiro. A miúda calou, mas tinha alguma coisa lhe minhocando na cabeça. Fábio tinha pele branca e portanto, como a mãe lhe ensinara outrora, ele era branco. Mas a mãe da Abiba frisou mais uma vez, sua repugnância em relação ao albinismo:
- Rochas nascem rochas.
Abiba ficou com a ideia que a raça de Fábio era uma doença contagiosa. Ela foi proibida de sair para a rua. Um dia, acesa de fogos, Abiba enganou os guardas e fugiu algo estranho lhe movia dentro do seu peito adolescente. Pouco depois, ela e o Fábio foram encontrados com os seus pais, sentados num banco do parque. Em casa, cada pai reprimiu seu filho. E disse a mãe de Fábio:
- Nós somos a última raça depois dos índios.
Raça perseguida nos últimos tempos e em extinção devido à superstição as pessoas eram caçadas e mortas para gerar riqueza. E se Fábio se metesse com Abiba, traria azar para a família dela e os pais não estavam dispostos às consequências. Os pais da Abiba conversaram os derradeiros planos devido à desobediência dela. O senhor Abdul, já tinha decidido:
- Vamos colocar expulsamento nela.
- Expulsá-la?
Não. Um pássaro para lhe guardar. Naquela zona havia um medicamento tradicional que os pais usavam para proteger suas filhas contra a gravidez precoce, bem como o relacionamento com pessoas erradas. No dia seguinte, Abiba tomou o medicamento sem notar, estava dissolvido na sua adorada sopa. Só que os pais não sabiam que aquele medicamento, também era afrodisíaco um efeito secundário que dava comichão nas bundas, nos pés e obrigava à prática de nudismo: Abiba já não parava em casa.
Ela passou a ser vista com saias curtas e calções jeans apertadíssimos. Mas Fábio já se tinha ido embora destinado ao externato, situado a uma longa distância dali. Dada a gravidade do problema, os pais da Abiba arranjaram um noivo para ela. Um alguém da mesma cor um homem trinta anos mais velho que ela. Era tradição da família. Abiba foi casada.
Então, no dia das núpsias, os dois já na cama, o guarda surgiu um pássaro saiu voando dentre as pernas abertas da Abiba, estragando todo clima do casal. Alarmado, o homem apanhou um enfarte e caiu, morto. Ela ficou sozinha. E assim foram os restantes dias da Abiba.
Nenhum lúcido a queria como esposa, ficou famosa por parir pássaros e matar homens. Para contrariar, era assim a sua miserável vida: se maquiava e pousava ali na varanda, sozinha e sorrindo às aves. As pessoas não entendiam aquela sua vaidade. Ela devia é chorar e tratar do seu sofrimento passarinhado. Os pais, preocupados, lhe indagaram o motivo da felicidade, e ela respondeu:
- Sou uma gaivota no alto mar.
Janelando, ela desfrutava, lá do céu, a esfericidade do planeta. Diferentemente das outras gaivotas, ela voava nocturnamente. Então deu-se que o corpo bem nutrido da Abiba desaparecia noite após noite. A palidez e o sofrimento, se gravavam no seu rosto. Ela inventara uma receita para dieta. Já não usava burca. Virou modelo, pousava para fotógrafos e assim aumentava a renda familiar, uma vez que o pai estava já muito velho, e o comércio não atravessava os melhores dias. Um dia, a mãe lhe pediu o segredo de voar. Abiba hesitou, mas depois disse:
- O voo é meu homem.
Os voos eram únicos que lhe podiam saciar a fome de sexo. E a mãe sabia dos casos com os voos. Mas o senhor Abdul, já não fazia voar a sua esposa. E a mãe queria ter o corpo da filha, leve, aerodinâmico, voando com a brisa do mar, passarelando a passarinho como Abiba. Então, a moça ilucidou a mãe de que o seu corpo era resultado de muitos voos, diferentes casos de voos os velozes, os acrobáticos, incluindo a planagem.
Um dia, arrumarram-se e saíram. E foi sempre assim, o corpo da mãe dela passarinhava, mãe e filha pareciam irmãs. Como era possível emagrecer tão rápido assim? Abdul, desconfiado, seguiu-as escondido na escuridão das árvores das ruas, e chegaram no local uma rua coberta de bares lado a lado, uma rua com gente cada vez mais parecida uma da outra. Lá, os pretos é que conduziam os voos. Abdul descobriu que a filha e a mulher eram prostitutas. Regressou à casa e suicidou-se.