Contos
Gota D`água
Marcelo Spalding
Pai, talvez você continue sem querer notícias, mas precisa saber que estou bem. A cidade é um grande cartão postal, me recebeu de luzes acessas. Você, que sempre gostou das águas paradas, adoraria conhecer o Guaíba, um lago tão grande que aqui chamam de rio. E não tem dono, qualquer um pode sentar à margem e namorar, conversar, escrever, pensar, sonhar. Eu, quando sinto falta do mato, do milho crescido, da casinha que não temos mais, venho pra cá. E lembro daquela tua frase: o que é uma gota de lágrima diante dum rio grande? Lembra o dia em que me disse isso? É, mas eu não achei que fosse sentir tanta falta dela. Nem que nossa vida mudaria assim.
Rosa, os dias aqui são curtos e o tempo parece que passa mais rápido. Por isso não escrevi antes. Mas saiba que a cada dia levanto, lavo as mãos, olho para o espelho e nele está nossa foto. É por ti que vim, por ti que trabalho. Não peça prazo, não tenha pressa. Está próximo o dia em que voltarei para ti buscar. Aqui você vai trabalhar numa loja muito fina, atender madames e ganhar altas gorjetas. Nunca mais vai precisar tirar leite, carnear boi, correr atrás das galinhas, ouvir aquele grosso te dando ordens e te explorando. Nem você nem a mana.
Carlos, sei que nesse mês vence a primeira prestação. Nem parece que há tanto tempo deixei o campo, o pai, a Rosa, os manos. Confesso ter ficado triste com tua carta, mas é a dificuldade que eles passam aí o que me dá forças para esta loucura. E, claro, tua ajuda. Aquele dinheiro foi fundamental nos primeiros meses, e mais ainda quando precisei comprar roupas. Para que roupas? As coisas na capital são muito diferentes, não se pode sair de camisa rasgada, velha, cabelos despenteados. As pessoas nos olham como se fôssemos bandidos e nos dão no máximo moedas, nunca trabalho.
Mana, que saudades! O Carlos contou das dificuldades que têm passado com o pai. Coitado, ao invés de chorar, ele bebe a falta da mãe. Assim acaba mal, mana, acaba mal, não esquece o que o padre disse. Bem, mas a verdade é que daqui não te mando notícias muito melhores. Pelamordedeus, não conte pro pai, mas a cidade e o campo sofrem do mesmo mal: tem gente demais e espaço de menos. Ou gente de menos com todo o espaço para si, não sei. O fato é que tive problemas com nossos pães. Até capinei, tirei pedras da casa duma madame, derrubei uma árvore, tudo que odiava fazer aí só para não passar fome. Pior quando olho o rio e lembro dos nossos planos. A gente fazia tantos...
Dra. Marisa, só a senhora pode me ajudar nesse momento difícil. Vim para a cidade com a roupa do corpo, alguns pães feitos pela mana e um dinheiro emprestado pelo Carlos. Aluguei um quarto, vendi uns pães, comprei os ingredientes para fazer mais pães. Só que onde moro não deixaram usar a cozinha, e me sugeriram alugar a da padaria do Seu Manoel. Fui lá e combinei de trabalhar de graça para ele de dia e fazer meus próprios pães de noite. Venderia ali mesmo. Só que ontem cheguei lá e ele tinha me demitido! Nunca fui empregado dele, levei meus pães, única riqueza que eu tinha, e ajudei o cretino a fabricar outros. Como posso ter sido demitido? Calculo que ficaram mais de cem dos meus pães para serem vendidos.
Mano velho, não sei nem o que responder. Esta tua carta me cai como mais uma bomba. Imagina que hoje de manhã mesmo fui expulso do quartinho. Agora essa, que a Rosa está de casamento marcado. E com o Carlos! O sem vergonha nunca respondeu às minhas cartas, nem pra cobrar ele me escreveu. Só podia ter coisa errada. Agora, mano, não sei o que faço. O pai cada vez mais doente, a Rosa não me espera mais, o dinheiro acabou. Voltar, talvez voltar. Mas voltar para onde? Para o acampamento? Levar a mana e o pai comigo e tentar de novo? Sabemos como funciona, não é solução. Nem ficar esperando outro explorador e suas migalhas. Não, voltar eu não vou. Que a Rosa case, faz bem. Não sei quando poderia buscá-la mesmo. No fundo fiz tudo isso pela mana. Ela não pode ser a vida inteira empregada daquele porco imundo. E quando morrer a patroa, a Dra. Marisa, nem respeito o filho da mãe vai ter. Deus me livre.
Padre, lamento não estar aí no campo para falar com o senhor. Tentei os padres aqui da cidade, mas poucas igrejas ficam abertas para alguém como eu. Não, padre, não sou mais o mesmo. Primeiro perdi os pães, depois as roupas ficaram trancadas no meu quartinho como pagamento dos atrasados, e hoje nem esperanças tenho mais. Sobrevivo graças a um senhor que me alimenta, me deixa dormir em sua garagem e em troca capino um terreno para ele. Isso não é vida. Não ganho nada, só comida, caneta e papel. Ele já disse para eu voltar, o mano também. Mas é por isso que escrevo, não posso voltar. Não existe mais a minha terra. Desde que a mãe morreu ela não existe mais. E o pai sabe disso, tanto que nunca mais viveu. Foi o senhor, padre, quem me explicou o perigo que era a cabeça de um viúvo, a força da tristeza mesmo nas almas mais nobres. Foi o senhor, padre, quem pediu para eu vender todas as facas afiadas demais, esconder cordas e navalhas. Foi o senhor, padre, quem pediu para eu acompanhar ele no rio. E foi no rio que eu entendi o porquê, padre. Ele não chorou, nunca chorou. Só olha para aquelas águas paradas, tristes, quietas. Um dia me perguntou o que é uma lágrima diante do rio grande. Não sabia, padre, não sabia mas aquelas palavras me cortaram. Verdade que não percebi isso naquele instante, precisei atravessar o estado, me arriscar neste cartão postal, perder pães, roupas e sonhos para descobrir a tristeza do rio. Do pai.
Agora eu entendo.
Que o senhor me perdoe, padre. E que a mana pense ter sido um acidente. Ela ainda merece ser feliz.
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