O dia amanheceu ensolarado e uma ideia azul celeste amanheceu também na cabeça de João. Vestiu sua melhor roupa, desceu o morro e entrou no supermercado. Compraria tudo quanto possível, mas nos bolsos, nenhum níquel. Colocou na parte de dentro da sua jaqueta uma embalagem de plus vita, pôs na cabeça um bom pedaço de queijo minas e cobriu com o boné.
Atravessou os corredores e os balcões dos caixas sem ser notado, mas, ao passar pelas barras que separavam os balcões dos caixas da saída do supermercado, ouviu um apito alto e estridente. Um grupo de seguranças correu em sua direção gritando para ele.
João correu para fora do mercado, atravessou a rua e viu uma viatura da polícia. Trincou os dentes, acelerou, protegendo o plus vita com a jaqueta e segurando o boné. Os policiais se juntaram aos vigilantes na perseguição ao homem e, quando estavam bem próximos de João, gritaram: "Pare de correr! Mãos ao alto!"
João estacou e virou-se. Sua boca articulou algo, mas não emitiu som algum.
A pouca distância, estavam os vigilantes erguendo seus cassetetes e os policiais sacando suas armas. "Atire para frente o que você pegou no mercado!" gritaram os seguranças. "Mãos ao alto!" gritaram os policiais. Todos ao mesmo tempo.
João franziu o cenho. Tirou do boné o queijo minas e atirou no chão a sua frente. Colocou a mão dentro de sua jaqueta.
Ele sentiu uma mordida em seu peito, depois outra, sufocou um grito ainda na garganta, caiu de joelhos, para depois tombar estirado como um animal abatido. Viu o sol radiante, fustigando seu rosto. A calçada tingiu-se de vermelho.
Lembrou-se da noite passada. Uma imagem se formava em seu pensamento. A lua furando o telhado de zinco para acariciar o rosto de sua filha Ritinha, que ressonava sobre um colchão mais mola que espuma, coberto com um lençol rasgado, em uma cama desconjuntada que rangia. Ele, o pai da criança, sentado em sua cabeceira, cismando consigo mesmo. Recordou-se das últimas palavras do médico sobre a saúde da filha: "Ela está prestes a ter uma inanição, Seu João. Precisa comer alguma coisa. Qualquer coisa!".
O seu salário era tão mínimo que, com muito esforço, só rendia até a metade do mês. Dona Zuma, sua esposa, apareceu na porta do quarto chamando-o para deitar. Ele encarou-a com cara de segunda feira e levantou-se, arrastando os chinelos no chão de terra batida. A mulher mordeu os lábios. Menos por vê-lo banzeiro, mais por não ter nenhuma palavra para consolá-lo.
O policial fez uma careta quando tirou de sua jaqueta uma embalagem de plus vita e entregou aos seguranças do supermercado, junto com o pedaço de queijo minas.
Os vigilantes voltaram ao supermercado carregando a mercadoria e logo, uma multidão se juntou em torno do corpo.
"Era ladrão", disse alguém. "Vagabundo!". "Deus me livre. Ladrão!", disseram outras pessoas que se aproximavam. "Vagabundo tem que levar tiro.", repetiu um grupo de homens no meio do grupo. "Meio dia.Tenho que almoçar.", disse uma mulher. "Preciso voltar ao trabalho." disse outro. "Estou atrasado." disse um jovem afastando-se dali. A multidão logo dispersava-se.
Uma alma generosa lhe deu por sudário uma folha de jornal. Como epitáfio, uma manchete em letras garrafais onde se lia: "Arrascaeta faz mais um gol e é o artilheiro do Flamengo no campeonato brasileiro". E como foto, o retrato de um golaço, indefensável, bem no ângulo esquerdo.
Jorge Almeida tem 51 anos, é formado em Engenharia Civil e trabalha há 17 anos como Engenheiro na área de Gestão de Projetos. Sempre quis escrever histórias, porém não sabia por onde começar. Teve esta oportunidade ao participar da Oficina de Escrita Criativa Online. Leitor voraz de romances e literatura clássica. Nas suas horas vagas, escreve histórias e descobriu na escrita criativa um novo prazer.