Quando falamos de crônicas, entramos no universo da escrita que transforma o cotidiano em narrativa, trazendo humor, leveza ou crítica às realidades vividas. Clarice Lispector traduz a crônica como um exercício que revela a alma ao leitor. Para ela, o texto da crônica ressignifica os acontecimentos do cotidiano com base nas impressões de quem a escreve.
Quando as mulheres são o tema central, o que elas esperam - ou não suportam - encontrar nessas histórias? Para a escritora e jornalista Ana Oliva, a crônica permite uma liberdade quase ilimitada. No entanto, ela alerta para a necessidade de conhecimento e sensibilidade ao tratar de temas complexos, como questões sociais, religiosas ou políticas. "Não me sinto à vontade para abordar certos assuntos porque, no momento, não acredito ter o domínio necessário para escrever sobre eles", confessa.
Carol Canabarro, cronista, complementa essa visão: "Qualquer assunto pode ser abordado, mas a forma e a intenção precisam ser responsáveis." Ela reconhece que, como mulher branca, escrever sobre temas como racismo requer um esforço consciente para reconhecer privilégios e apoiar a luta de mulheres negras, sem se apropriar de suas vozes.
Ao abordar as experiências de mulheres, é imprescindível lembrar que a realidade feminina não é homogênea. Assim, escrever de forma responsável requer respeito às diferenças e um cuidado com o "lugar de fala", seja do escritor ou do público.
Lugar de fala: o ponto de partida
Ana relata que se apoia na expressão "lugar de fala", cunhada por Djamila Ribeiro quando o assunto do texto não a deixa à vontade para escrever. "É preciso não só conhecimento aprofundado para não ficar na abordagem superficial ou controversa quando vamos escrever sobre temas específicos ou complexos", explica.
A filósofa, feminista negra, escritora e acadêmica brasileira, Djamila, define esse conceito como o espaço em que corpos em locais inferiores reivindicam sua existência no discurso. Não se trata de proibir vozes, mas de garantir que cada pessoa possa se reconhecer em sua posição social e falar com propriedade a partir dela.
Essa ideia é essencial para compreender como as mulheres se posicionam diante de crônicas que as retratam, especialmente em um cenário ainda permeado por desigualdades.
Quando o assunto é tabu, a abordagem ganha camadas adicionais de dificuldade. Ana Oliva evita temas como aborto e sexualidade por não se sentir à vontade para explorá-los. Já Carol Canabarro adota uma técnica reflexiva inspirada em Saramago: "É preciso sair da ilha para ver a ilha." Ela busca entender o impacto de um tema para outras realidades antes de escrever.
O fato de ser escritor ou escritora não concede competência para tratar de qualquer temática, segundo Carol. Ser cronista não é sinônimo de ter o direito de sair dando opinião sobre qualquer coisa, é preciso ser um estudioso do tema. A cronista não é uma opinadora, mas uma formadora de opinião. "Hoje não sou apta para discorrer sobre a Guerra da Ucrânia, muito embora tenha um posicionamento contrário a guerras, mas que está distante da análise profunda dessa realidade específica. Logo, enquanto eu não estudar, em fontes seguras sobre essa temática, não estará em minhas pautas", explica.
Ao serem questionadas sobre o que as afasta da leitura de crônicas sobre mulheres, as respostas de ambas são categóricas. Ana ressalta a superficialidade e a falta de embasamento, enquanto Carol é incisiva ao apontar crônicas que perpetuam misoginia ou rivalidade feminina. "O que me faz abandonar uma leitura é a objetificação da mulher, a imposição de padrões ou a perpetuação de estereótipos, principalmente quando escritas por homens", afirma Carol. Para ela, crônicas que não consideram a multiplicidade das realidades femininas apenas reforçam estruturas ultrapassadas, afastando as leitoras.
O compromisso das pessoas que escrevem vai além da habilidade técnica, envolve uma empatia que só pode ser alcançada ao sair da própria bolha social e olhar para outras vivências. E lembrar sempre que essa liberdade não elimina a responsabilidade.
Ao final, se conclui que as mulheres não gostam de ler em crônicas sobre mulheres textos que perpetuam preconceitos, que falam de fora para dentro e sem empatia ou compreensão. Um cronista, homem ou mulher, que se propõe a tratar do universo feminino deve, antes de tudo, entender que sua escrita não existe no vazio, mas reflete e impacta vidas reais.