Asas
 



Contos

Asas

Sônia Coppini


Eles vêm sempre à noite. Nenhum de nós se atreve a emitir um gorjeio, um trinado, um pio que seja. Trazem grãos e depositam nas pequenas cuias. Despejam gotas de água para cada um de nós. E se postam ao nosso redor. Suas vozes barulhentas, sem nenhuma melodia que nos traga algum alívio, alguma esperança de sairmos de nossa clausura.

São seres grotescos, tamanho descomunal, ao invés de asas, adendos que partem da lateral do tronco, finalizados por cinco pinças. E dois prolongamentos abaixo do corpo, mantendo-os fixos no solo. Nada de plumas, de viço, de cores. Uma tonalidade desvanecida naquela crosta que os reveste e, sobre ela, materiais amorfos, cada um diferente do outro, ora tapando o prolongamento inferior, ora tapando o simulacro de asas. Ininteligíveis os sons que emitem e nenhum bico para projetar a voz. Apenas uma abertura rodeada por uma camada vermelha, que muda de forma a cada som. Vez por outra, a abertura revela em seu interior uma língua colossal, cercada por formações claras que parecem lascas de calcário.

Logo que chegam, fechamos os olhos para evitar qualquer contato. Mantemos nossas asas imóveis, prestamos atenção no barulho dos grãos que caem nas cuias. Impossível não termos fome depois de um dia inteiro. Sem a chance de procurarmos nossas frutas prediletas, beber da água límpida do regato ou da chuva que acabou de cair. Nos rendemos aos grãos insossos que trazem, à agua parca que mal conseguimos tocar, ao pestilento banquete. Perdemos a noção de quanto tempo já estamos aqui. Nossas penas caem, nossos ossos fracos. Comemos e bebemos sem nenhum alarido, nada de movimento de asas, nada de cantos. Esta é uma combinação que temos. E todas as noites nossa indiferença provoca neles um estado de fúria. Sacodem nossas gaiolas, fazem gestos violentos, gritam. Querem arrancar de nós alguma recompensa. Sabemos qual, mas resistimos.

É por isto que hoje faremos tudo diferente. Eles acabaram de chegar. E tão logo entraram, chamamos os outros. Um gorjeio longo e dois trinados. É o que basta para virem todos. Os outros nos conhecem há eras, não esperam nada de nós, nenhuma recompensa. E são maiores do que eles.

Eles são tomados de pavor quando os outros chegam. Suas asas gigantescas arrebentam os vidros das janelas. O seu canto faz vibrar todos os metais da sala, rompem as barras de nossas gaiolas. Um feixe fulminante de luz deixa os seres grotescos cegos. Eles se batem uns nos outros, suas pinças tateiam o ar, movimentam-se sem direção, tentam escapar do redemoinho. Eles não resistem. E caem.

Os outros nos guiam de volta ao lar. Nenhuma clausura para nossas asas. Cruzamos o céu com o nosso canto. Olhamos para baixo e enxergamos eles, agora. É a sua vez de experimentar o exílio. A pão e água.


***


Sônia Coppini nasceu em Bento Gonçalves. Estudou Artes Cênicas na UFRGS. Participou de grupos de dança e teatro, e trabalhou no Planetário da UFRGS, como produtora de programas. Participou da antologia Contos de Oficina 9 (1992), da Oficina de Criação Literária, ministrada por Luiz Antônio de Assis Brasil. É autora, com Dudu Sperb, de Mast e o planeta azul (2008) e Lírax e Vegaluz (2013). Participa do Grupo de Leitura e Criação Literária, ministrado por Jacira Fagundes, no Espaço Metamorfose.

 

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