Suspiros
 



Contos

Suspiros

Mário Lúcio


Sempre suspirei. Desde menina minha mãe falava sobre os meus suspiros. Anos mais tarde, eram os amigos que faziam observações diversas a este hábito. Nunca dei bola. Hoje que sou adulta, eu mesma me pego suspirando diversas vezes e não sei o motivo. Por não saber exatamente o que é um suspiro, corri ao dicionário para ter uma descrição sobre o hábito. Encontrei o seguinte: s.m. (sXIII) 1 inspiração mais ou menos profunda e prolongada, seguida de expiração audível, motivada por incômodo físico ou psíquico ou por alívio, satisfação etc.

Creio que deve ser aminha concentração que o desencadeia. Reparei que o suspiro vem logo depois de um momento de concentração. Sou muito concentrada. Sou muito obstinada. Sou muito teimosa. Quando estou no meio de um processo de criação, trabalho com produção de vídeo, esqueço de tudo, do mundo e inclusive de mim. Passo horas editando vídeos, isto é, montando imagens no notebook, estas colhidas com minha câmera de vídeo digital. Gravo vernissagens, documentários e eventos relacionados à arte. Registro arte. Adoro arte. Respiro arte. Meu suspiro deve vir, conforme a definição do dicionário, por alívio ou satisfação.

Outra obstinação que tenho é navegar. Tenho um amigo, cheio do dinheiro, que me empresta um de seus barcos. O barco é praticamente meu. Frequentemente vou ao ancoradouro e vistorio a sua manutenção. Tem vezes que entro no neste barco e fico horas trabalhando nas minhas imagens. Eu sou obstinada. Tem vezes que meu pé adormece. Levanto, caminho, tomo água, como alguma coisa e volto correndo para o computador. Tenho a desconfiança de que quando estou concentrada paro de respirar. Ao término da tarefa vem aqueeele suspiiiro. Outras vezes navego só. É o céu, a água, o barco e eu. Dificilmente tenho companhia. Isto é uma coisa que incomoda o verdadeiro dono do barco, o pessoal da manutenção e o diretor da marina. De certa forma eles estão certos, embora haja um rádio potente a bordo, nunca é seguro velejar só, e além de tudo não sei nadar.

A rota da rotina da minha vida seguia de uma forma inalterada. Simplesmente constante. Houve então um trabalho sobre uma exposição de artes plásticas em que o artista utilizou algumas das expressões humanas como argumento. Uma infinidade de representações , sorrisos, testas enrugadas, bocas alegres, tristes ou indignadas. Entre elas estavam três quadros que representavam um suspiro. O primeiro inspiração, o segundo expiração e o terceiro representava o rosto satisfeito de uma linda moça loira. Adorei gravar e editar as imagens e depoimentos do artista. Tudo como eu gosto. Sensibilidades e sutilezas, entre outras, representadas pelo pincel mágico.

O dinheiro foi muito bom e a minha satisfação melhor ainda. Mas o prazo estava apertado. Sabe como são aqueles trabalhos de última hora. O vídeo seria apresentado durante a inauguração da exposição numa galeria que fora construída numa ilha há, mais ou menos, um ano. Eu nunca estivera na ilha. Tudo isso aconteceria às dezoito horas de uma sexta-feira. No dia da apresentação, concluí a montagem exatamente às dezoito horas e quinze minutos. Um quarto de hora além do prazo. O celular não parara de tocar há mais ou menos dois dias. Tudo poderia ter sido mais rápido se não fosse a minha obstinação pela perfeição. Os detalhes me dominavam.

Quando eu me preparava para zarpar, o tempo começou a fechar. Nuvens espessas cobriam a paisagem cinzenta. O pessoal da marina me aconselhou a não sair com um tempo daqueles. O diretor chegou a telefonar para o meu amigo exigindo uma posição dele em relação à minha teimosia. Eu repetia que a ida até a ilha seria rápida e segura. O verdadeiro dono do barco me pediu para manter a calma e não sair da marina que ele estava chegando. Tudo inútil.

Na primeira oportunidade fugi com a embarcação. Ao me afastar alguns metros do ancoradouro, um aguaceiro desabou sobre tudo. O barco começou a chacoalhar. Aumentei a velocidade do motor. Não foi o suficiente. O celular tocou mais uma vez. Atendi e disse que já estava a caminho. Tudo inútil. Uma rajada de vento mais forte balançou o a embarcação e me jogou para a parte externa. A água e o vento não deixavam eu me agarrar em nada. Fui jogada diversas vezes contra os parapeitos, e numa dessas vezes bati a cabeça. Uma dor enorme correu do centro do meu crânio até a minha nuca. Não vi mais nada. Acho que morri. Nem vi se dei o meu último suspiro.

 

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